segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Meu trauma profissional

Do alto do palanque improvisado na estância hidromineral, o presidente da República discursava para a pequena multidão que se aglomerou em torno, na tarde daquela sexta-feira. Em certo momento, vociferou contra seus opositores políticos, ameaçando-os com palavras duras. Eu prestei atenção nelas e anotei-as com minha caneta bic no maço de laudas do jornal que carregava. Após cinco anos trabalhando na sucursal belo-horizontina do melhor jornal do Brasil, batizado na cobertura do Plano Cruzado, já experiente em todo tipo de matéria e aprovado com louvor na intensa e trepidante campanha para a eleição presidencial de 1989, a primeira depois de mais de duas décadas de ditadura militar, eu tinha ouvidos bem treinados para notícias e sabia muito bem distinguir o que era importante do que não era. Olhei meus colegas dos três jornais concorrentes, os quais cumprimentara gentilmente, mas sem intimidade nem cumplicidade, e me mantive à distância, pois eles eram de Brasília, repórteres acostumados a cobrir o presidente diariamente, amigos entre si, e eu só os conhecia pelos nomes impressos nas matérias assinadas. Na minha soberba característica, não me sentia inferior a eles, ao contrário, pois tinha uma trajetória bem-sucedida e relações de respeito mútuo com colegas e chefes, de forma que me sentia seguro no meu trabalho. Exatamente um ano antes, tinha publicado minha única manchete no jornal, cobrindo uma inspeção do ministro da Saúde em hospitais públicos da capital mineira; atento, anotei o diálogo do ministro com o diretor da unidade e o transmiti por telefone diretamente ao editor no Rio, que o reproduziu literalmente com destaque. A matéria, mostrando como os pontos dos médicos ausentes tinham sido cortados pessoalmente pela maior autoridade em Saúde do país, repercutiu, meus colegas não tinham sido tão detalhistas nos seus relatos, e recebi elogios. Fiquei satisfeito, mas não me gabei, eu sabia que jornalismo é uma empreitada diária, a manchete de hoje já está velha, o repórter tem que matar um leão todos os dias, como se diz.

De forma diferente, isso se repetiu naquele fim de semana fatídico em que cobri o presidente da República em Araxá. No momento em que, à parte, olhava meus três colegas de Brasília, percebi que eles “trocavam figurinhas”, expressão que a gente usava para se referir às impressões de cada um sobre o que todos tinham presenciado, o que considerava importante, o que era novo e o que não era e como pretendia escrever seu lide. Para nós, do JB, essa prática não era importante. Não que não fizéssemos isso, mas estávamos acostumados a confiar no nosso taco e não temer levar furo, pois éramos quase sempre nós que dávamos o furo, uma vez que nos sentíamos seguros para fazer avaliações próprias, cavar fontes, buscar informações exclusivas. Não havia na sucursal aquela paranoia que tinham os colegas do principal jornal concorrente, instruídos a colar em nós, os do JB, para não serem furados. O sentimento que me tomava era muito diferente: um profundo desprezo por aquele presidente ególatra, falaz, sequestrador da poupança dos brasileiros e superficial como um pires. E bravateiro. Seu discurso agressivo não passava de bazófia, ele procurava animar seus admiradores, bastante desanimados e reduzidos, depois do plano econômico aterrador que implantara um ano antes e já fracassara. Ele dissera que só tinha uma bala para matar a fera da inflação – e errara o tiro. Continuava, porém insistindo no seu estilo de se apresentar como uma espécie de estrela de Hollywood, criando fatos, dando declarações bombásticas, produzindo imagens que os jornais e revistas estampavam e as televisões exibiam, explorando seu dinamismo, jovialidade e coragem, como, por exemplo, ao pilotar um avião supersônico. Ali mesmo, tinha se exibido numa corrida matinal por um parque, em trajes esportes, seguido por uma multidão de repórteres e abordado por eleitores fanáticos. Seu governo, a primeira experiência de um presidente eleito pelo voto direto, era assim, uma espécie de espetáculo diário estrelado pelo presidente, e os jornalistas estavam sempre correndo atrás dele, fotógrafos e cinegrafistas, para registrar a melhor imagem, repórteres para produzir manchetes. Nesse show, a imprensa se transformava numa espécie de máquina de propaganda do governo cujo funcionamento eu tinha oportunidade de acompanhar de perto naquele fim de semana. A docilidade dos meus coleguinhas chamara minha atenção, em especial a intimidade da repórter do principal concorrente com o presidente: ele a chamava pelo nome, lhe sorria, confidenciava palavras no ouvido. No dia seguinte, essa camaradagem ficaria descarada, quando um emissário do presidente a procurou entre nós, disse que ele queria falar com ela e ela o acompanhou à suíte presidencial; eu nunca soube o que conversaram, mas achei aquilo também desprezível.

O fato é que, enquanto observava meus coleguinhas de Brasília – a repórter predileta do presidente e os repórteres dos outros dois jornais de circulação nacional – conversarem naquele fim de tarde, depois do discurso presidencial, eu tomei uma decisão: não mandaria uma nova matéria. Aquele ataque não passava de retórica, seu objetivo, além de animar a plateia, era produzir manchetes na imprensa e criar um fato político. Nós, jornalistas, estávamos sendo usados pelo presidente, que queria se promover e enviar um recado à oposição. Eu não me prestaria a esse papel.

Se eu fosse um sujeito importante, se o episódio tivesse tido relevância, o título do alto seria: “A verdade sobre a cobertura do presidente em Araxá”, mas o episódio não teve importância na política brasileira, muito menos eu fui um repórter de destaque. A única importância que o fato teve foi para a minha vida profissional e a minha vida pessoal, porque, percebo agora, as duas sempre andaram juntas, nos momentos decisivos. Eu nunca soube distingui-las, sempre tomei decisões subjetivas em relação à minha profissão.

Naquela tarde em Araxá, eu tomei minha equivocada decisão com soberba tranquilidade. Como disse, nós, repórteres da sucursal do JB em BH, sempre gozamos de uma exemplar segurança, proporcionada pela excelência do nosso trabalho, e eu, pessoalmente, nunca tinha sofrido sequer uma admoestação por levar um furo. Eu sabia – e não me enganei – que aquelas palavras bombásticas pronunciadas pelo presidente no palanque estariam esquecidas no dia seguinte, sequer teriam consequência, caso a imprensa não as reproduzisse, atuando como máquina de propaganda do governo. Se o editor me questionasse, eu as tinha anotado para o jornal publicar, mas não o faria por minha conta. Obviamente, essa decisão era equivocada, porque, fosse como fosse, eu não tinha direito de privar os leitores do JB daquela demagogia presidencial. Pelo menos não deveria fazer isso sozinho, no mínimo tinha obrigação de telefonar para meu subchefe e lhe narrar o que tinha ouvido, transferir para ele a responsabilidade de publicar ou não aquele destempero. Se eu estivesse preocupado com meu emprego, era o que deveria, prudentemente, fazer. Mas não fiz. Já tinha mandado uma matéria com bastidores da viagem presidencial, cheia de fontes, exclusiva, saborosa, como se dizia, tão boa que no dia seguinte mereceu elogios eloquentes do editor regional, e decidi não enviar outra; sequer liguei para a redação, assumi a responsabilidade sozinho.

Ajuda a explicar minha atitude temerária o fato de que, naqueles dias, a sucursal andava tumultuada, nossa equipe estava insatisfeita e eu mesmo queria sair do jornal, embora não tivesse coragem para pedir demissão. O ambiente no JB mudara radicalmente depois da eleição do presidente. A cobertura da eleição presidencial de 1989 foi o canto do cisne de um jornal que era então o melhor do país e deu um banho nos concorrentes naquela campanha histórica. A equipe foi reforçada, especialmente a sucursal de Belo Horizonte, pois os candidatos privilegiavam Minas Gerais, considerado estado decisivo, como realmente foi naquela e em todas as eleições presidenciais desde então. Minas é uma espécie de síntese do Brasil e o candidato que vence no estado vence também no país, geralmente com percentuais de votos bem próximos. Aquela eleição teve mais de duas dezenas de candidatos e frequentemente vários percorriam o estado ao mesmo tempo em busca de votos. Por ser uma novidade para a maioria dos brasileiros, eleitores e jornalistas, além dos candidatos, havia muito tempo aguardada, a eleição de 1989 foi uma verdadeira festa cívica, repleta de imprevistos. Com empenho dedicado do editor regional, nós, da sucursal do JB em BH, acompanhávamos tudo e nos esmerávamos em produzir notícias exclusivas, abordando os mais diversos aspectos do pleito, presentes nos locais mais improváveis, interferindo, com nossas matérias, até mesmo no rumo da campanha. Foi, por exemplo, a matéria exclusiva de uma colega atenta que derrubou definitivamente as pretensões de um candidato famoso e metido a engraçado, que, num debate noturno numa faculdade, soltou o famoso comentário: “Tá com vontade sexual, estupra, mas não mata”. Ele não imaginou que tinha jornalista na plateia, mas tinha, porque, na eleição presidencial de 1989, em Minas, onde tinha um candidato, tinha um repórter do JB. Foi uma cobertura inesquecível e eu me lembro bem como terminou. No segundo turno, fui escalado para cobrir um lugarejo onde Lula tinha eleitores tão pobres quanto fiéis. Quando liguei para a sucursal para passar a matéria, o editor regional, o mesmo, me disse: “Esquece, não precisa mandar a matéria, pode voltar, Lula perdeu”.

O editor era petista. A equipe, no todo, estava dividida; embora o número de petistas fosse maior, havia também eleitores do Covas, do Brizola e do Freire, mas, no segundo turno, que eu me lembre, Collor recebeu só um voto. Nossas simpatias, porém não prejudicavam nosso trabalho, ao contrário, possibilitavam que não fôssemos cegos para a estrutura crescente do candidato eleito e ajudavam a equilibrar a cobertura. No começo, a preferência do eleitorado brasileiro foi se alternando e a cada semana aparecia um azarão para fazer frente aos consistentemente preferidos: Collor, Brizola e Lula. A eleição seria em dois turnos, o que alimentava duas dúvidas: algum candidato conseguiria maioria no primeiro turno? Se não, quais seriam os dois adversários no segundo turno? Desde o começo, ficou evidente que Collor era o preferido, mas obter a maioria dos votos era outra coisa. Seus concorrentes se alternavam, de repente algum disparava e ameaçava superá-lo. Além disso, pesquisas indicavam chances de candidatos mais fracos o derrotarem no segundo turno. Eu não tinha candidato, escolhi o meu na cobertura, observando-o, ouvindo-o, entrevistando-o, ponderando, comparando. Votei no Covas, mas reconheço hoje que Brizola teria sido o melhor presidente, pois era o mais experiente e tinha um bom programa de governo. O empresariado que apoiara a ditadura militar não o aceitava, porém. 

Reconheço também que, além de contar com a simpatia de muitos jornalistas, Lula, então um ex-operário metalúrgico, exercia fascínio sobre os eleitores, especialmente os mais simples. Ele era o candidato mais parecido com as pessoas comuns, dava atenção a todos, conversava com muitos, ia coletando informações sobre a vida do povo da localidade que visitava e, quando subia no palanque, juntava tudo num discurso coloquial que encantava a plateia. Foi a ele que eu pedi o primeiro autógrafo da minha vida, para minhas filhas pequenas – e ele escreveu, numa lauda do JB: “Para Flora e Marina, um abraço do Lula”. Naquela eleição, participei indiretamente de outro episódio importante. Foi quando Collor apresentou na sua propaganda eleitoral uma ex-namorada do Lula que o acusava de ter lhe pedido para fazer um aborto. O candidato petista estava num comício em BH no mesmo horário e o editor regional me mandou lá para ouvi-lo a respeito. Como ninguém no palanque tivesse visto o programa, precisei narrá-lo. Nas suas memórias, ao lembrar a história, o assessor de imprensa Ricardo Kotscho afirma que aquele foi o ponto de inflexão da campanha do Lula, “que até então só pegava sinal verde”.

Embora quase todos os candidatos fizessem questão de ser simpáticos com os jornalistas, entre os quais os do JB não recebiam as menores atenções, alguns transpareciam integridade, honestidade, sinceridade, enquanto outros eram evidentemente espertalhões e inconfiáveis. O líder nas pesquisas tornou-se o pior candidato para se cobrir, não só pelas multidões que arrastava, mas também pelo aparato de segurança mobilizado ao seu redor, responsável por violências contra opositores, maus tratos a eleitores e até desrespeito ao trabalho dos jornalistas. Salvo exceções, oportunistas ou sinceras, a animosidade mútua entre repórteres e o futuro presidente, incluindo sua entourage, ficou logo escancarada. Todos os seus defeitos de ordem pessoal já eram então conhecidos e comentados e apareciam em matérias. As graves acusações que mais tarde seriam abordadas pela imprensa e levariam ao seu impeachment também já eram conhecidas. Enfim, na imprensa, todo mundo sabia, já na campanha eleitoral, quem era aquele que viria a ser o futuro presidente, mas, diante do risco da eleição dos esquerdistas Brizola ou Lula, os empresários da imprensa escolheram ignorar seus defeitos.

A cobertura do JB destoava dessa escolha e por isso era tachada de “petista”. Quando a eleição se consumou, o jornal viu-se em situação difícil, mudou sua chefia de redação e sua linha editorial, cada vez mais governista, o que afetou o ambiente de trabalho. Somava-se a isso o comportamento pessoal do editor regional, infrequente no trabalho, às vezes ausente durante dias. Foi numa situação assim e por força de uma série de coincidências que eu, que não era repórter de política, cobri a visita presidencial em Araxá: enquanto o presidente passava um fim de semana em Minas Gerais, o editor regional tinha sumido, a primeira repórter de política se demitira, o segundo teve um súbito problema pessoal e o subchefe me escalou de última hora para viajar. Nenhum de nós poderia supor, porém, muito menos eu, considerando nosso brilhante currículo coletivo e meu confiável currículo individual, o que estava para acontecer: que eu faria o que fiz e que me tornaria um bode expiatório. Depois de ouvir os elogios do chefe, no sábado de manhã, eu baixei sua bola, perguntando-lhe se tinha visto os outros jornais, ele respondeu que não, e eu lhe disse para ver. Ele não disse mais nada. Fiz e enviei a minha matéria do dia; apesar da discrepância entre a manchete do JB e as dos outros jornais, o assunto não repercutiu, porque havia rumor forte de uma bomba, que monopolizou as atenções dos jornalistas no fim de semana: a possível demissão da ministra da Economia, que eu tratei de apurar e, dessa vez, não destoei dos meus colegas.

Quando, na segunda-feira, o presidente voltou para Brasília e eu cheguei em Belo Horizonte, o editor regional me chamou à sua sala e foi curto e grosso: “Você está demitido. Sinto muito, mas não posso fazer nada. É a sua cabeça ou a minha”, me disse. Eu me resignei, como me resignava sempre, e na verdade senti alívio por me ver livre daquele suplício em que vivia desde 1990, querendo sair do jornal e sem poder pedir demissão. Apesar do trauma que me amargurou, pela situação em que a demissão se dava, eu tinha a desculpa de ela ter sido drástica e injusta. Mais difícil foi, nos dias seguintes, recusar as propostas de emprego que me foram feitas: eu não queria mais ser jornalista e considerava incogitável trabalhar em outros jornais depois de trabalhar no JB: todos me pareciam menores, quase insignificantes.

(Capítulo do livro inédito Nada é o que parece ser.) 

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