O jornalista Paulo Zocchi, presidente do Sindicato dos Jornalistas
Profissionais de São Paulo, publicou na Revista de Jornalismo ESPM
um artigo excelente no qual demonstra de forma irrefutável o que
está escrito no título acima. É urgente que a sociedade brasileira
conheça essa realidade, é urgente que os jornalistas discutam o
assunto. O artigo é longo, ocupa seis páginas da revista, razão
pela qual não vou abordá-lo de forma minuciosa, mas destacar os
pontos que considero essenciais e acrescentar meu ponto de vista.
Antes, algumas palavras sobre a revista.
A ESPM – não confundir com a ESPN, a emissora de esportes
americana, que mantém canais por assinatura no Brasil, num nível de
qualidade muito acima da televisão brasileira – é a Escola
Superior de Propaganda e Marketing, tradicional instituição
paulistana. Ela publica a Revista de Jornalismo ESPM, que está no
seu número 21 (janeiro-junho de 2018), com periodicidade semestral,
e tem os seguintes subtítulo e lema: “Edição brasileira da
Columbia Journalism Review. Imprensa livre, democracia forte”.
Essa ligação com uma instituição americana, se deixa o leitor
com a pulga atrás da orelha, é certamente um dos motivos da
qualidade da publicação, incomum no Brasil. Aqui, as publicações
ou são para público amplo e superficiais, ou são acadêmicas e
chatas. Uma exceção é o Le Monde Diplomatique, também com
inspiração estrangeira, no caso francesa. Com a internet, esse
quadro vem mudando, mas entre veículos impressos se mantém. A
edição nº 21 da Revista de Jornalismo da ESPM (é preciso escrever
assim, por extenso, porque a ESPM tem outra revista) trata de
diversos assuntos fundamentais para a prática do jornalismo no
Brasil. Eu me pergunto quantos jornalistas a leram. Não conheço
ninguém que tenha esse hábito (de resto, o leitor comum talvez se
surpreenda ao saber que grande parte dos jornalistas lê pouco), e eu mesmo só tenho
acesso à revista por acaso.
Mas meu assunto não é a revista de jornalismo da ESPM (que
merece também outros textos, sobre outros dos seus artigos) e sim
o artigo fundamental do presidente do sindicato dos jornalistas
paulistas. Começo pelas revelações mais estarrecedoras. Zocchi nos
conta que as principais empresas jornalísticas do país recomendam
formalmente aos seus empregados jornalistas que não expressem suas
opiniões e até proíbem que eles tenham militância política.
As principais empresas citadas por Paulo Zocchi são: Folha de S.
Paulo, Editora Abril e TV Globo. A recomendação formal é feita por
meio de orientações por escrito, guia interno e comunicados.
O Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São
Paulo (Sertesp) confirma essa posição patronal ao se recusar a
incluir na Convenção Coletiva de Trabalho (CCT) uma “cláusula de
consciência”, pela qual o jornalista tem direito de se recusar a
fazer matérias que firam o Código de Ética dos Jornalistas
Brasileiros.
O fato
mais recente que chamou atenção para essa prática foi a demissão
do repórter Diego Bargas pela Folha, em outubro de 2017.
Bargas foi demitido no mesmo dia em que a Folha publicou matéria
sua com o título “Criado por Danilo Gentili, comédia juvenil ri
de bullying e pedofilia”. A matéria foi atacada nas redes sociais
pelo comediante e alguns dos seus milhões de seguidores, que
acusaram o repórter de ser “militante do PT”. Usaram para isso
publicações de Bargas nas suas páginas nas redes sociais. E a
acusação foi o pretexto do jornal para demiti-lo, pois, de acordo
com orientação da direção de redação “sobre ações em redes
sociais”, datada de 8 de setembro de 2015, “o jornalista da Folha
deve evitar: manifestar posições político-partidárias; emitir
juízos que comprometam a independência ou prejudiquem a imagem da
Folha”.
A Editora Abril afirma no seu guia interno que “considera a
militância política do jornalista como desaconselhável” e a
proíbe para jornalistas de política e economia. Determina ainda que
“o jornalista não deve escrever em sua página nas redes sociais
ou blogs nada que não escreveria nos títulos da Abril”.
E a Globo? A gigante da comunicação – esse polvo presente em
todos os lugares, como não é permitido a nenhuma outra empresa do
ramo em nenhuma outra grande nação, nem nos EUA, nem na Europa –
definiu em comunicado recente, citado por Zocchi: “[a] participação
de jornalistas do Grupo Globo em plataformas da internet e blogs
pessoais, redes sociais e sites colaborativos deve levar em
conta que os jornalistas são, em grande medida, responsáveis pela
imagem dos veículos para os quais trabalham e, por isso, devem
evitar em suas atividades públicas tudo aquilo que possa comprometer
a percepção de que exercem a profissão com isenção e correção”.
Donos de jornais e revistas e concessionários de emissoras de
televisão e rádio no Brasil não apenas são uma pequena elite que
controla os meios de comunicação no país – como é sabido e
confirmam diversas pesquisas, a mais recente e abrangente delas da
organização internacional Monitor de Propriedade de Mídia, que
pode ser lida no link https://brazil.mom-rsf.org/br/.
Eles também se comportam em relação aos seus empregados como os
latifundiários se comportavam em relação aos escravos: como
propriedades suas. Assim, como propriedade, jornalista não tem
opinião, sua função é expressar a opinião do seu patrão.
Mais estarrecedor ainda é constatar que tal opinião não se
limita a uma parcela do empresariado e nem mesmo a todo empresariado.
Ela atinge o Estado e é expressa por magistrados. Conforme citado no
artigo de Paulo Zocchi, o ministro Emmanoel Pereira, do Tribunal
Superior do Trabalho, ao se pronunciar contra a “cláusula de
consciência”, no dissídio coletivo dos funcionários da Empresa
Brasileira de Comunicação (EBC), em 2016, afirmou, que, se fosse
proprietário de um jornal e decidisse criticar um prefeito,
ordenaria a um de seus jornalistas que o fizesse em reportagem, e
ele, como empregado, teria a obrigação de obedecer.
Por que será que não nos espantamos com isso? De fato, o caso
hipotético citado pelo ministro do TST faz parte do cotidiano do
jornalista brasileiro.
Diz o ditado que o pior cego é o que não quer ver. Às vezes eu
tenho impressão de que o jornalista não quer ver a realidade que
envolve sua profissão, na qual sua liberdade é limitada pela
liberdade do seu patrão. Realidade que nos coloca, como
profissionais, na condição de escravidão que atinge a todos os
trabalhadores brasileiros, conforme explica o sociólogo Jessé
Souza no seu livro “A elite do atraso”. Talvez isso aconteça
porque o jovem jornalista sonhou longamente em trabalhar numa grande
grife jornalística, talvez porque o velho jornalista, premido pelas
necessidades da sobrevivência, se resigne a conviver com o problema
insidioso.
A realidade exposta por Paulo Zocchi sempre
existiu ou faz parte do golpe de 2016?
Evidentemente, a internet criou uma situação que inexistia, a de o jornalista exercer sua liberdade de expressão em redes
sociais, blogs pessoais etc., e atingir milhões de pessoas, muitas
vezes público superior ao dos veículos em que trabalha. Antes, expressas apenas em rodas familiares e mesas de bar, as opiniões divergentes dos jornalistas não incomodavam os patrões, não podiam fazer frente à versão oficial, pública, publicada. Mas é verdade também que neste século as empresas jornalísticas assumiram mais francamente o papel de partido político da direita, estreitando os limites para opiniões divergentes dentro dos seus veículos. Isso é parte do golpe e se consolida com ele.
O fato é que, mais uma vez, um problema importante, ao ser
analisado, revela como ele está enraizado na sociedade brasileira –
na comunicação, nas empresas, no Estado, na ideologia. Para que a
democracia avance no Brasil é preciso mexer em tudo. A ordem que
temos hoje é uma deterioração do Estado que a Constituição de
1988 estabeleceu formalmente, tentando arranjar as diversas e
conflitantes forças sociais que afloraram no fim da ditadura militar
de 1964-1985, e que podem ser resumidas em dois grandes campos, o
democrático e o liberal.
Não tenho dúvida de que o Brasil, como o mundo, avança em
direção à democracia, mesmo porque o liberalismo já demonstrou,
há um século, que suas consequências são guerras, revoluções,
totalitarismo. A democracia, porém, parece vir muito devagar, e
geração após geração só consegue ver parte dela, nunca o todo:
o Estado democrático, organizado e estável. No qual, entre outras
coisas, os jornalistas não são propriedade dos seus patrões e
podem exercer a liberdade de expressão, fundamental ao exercício da
profissão.