sábado, 16 de março de 2019

O extermínio das abelhas pelos agrotóxicos no Brasil

Publicado pela Agência Pública

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Apicultores brasileiros encontram meio bilhão de abelhas mortas em três meses

Casos foram detectados no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Mato Grosso do Sul.
Análises laboratoriais identificaram agrotóxicos em cerca de 80% dos enxames mortos no RS.
Pesticidas que causaram extermínio no Brasil estão banidos da União Europeia.
Impacto nos polinizadores faz Ibama reavaliar registro de quatro ingredientes ativos.
MPF investiga mortes em 4 estados e no Distrito Federal.

7 de março de 2019. Texto: Pedro Grigori, Agência Pública / Repórter Brasil. Infográficos: Bruno Fonseca. Especial: Por trás do alimento.

Albert Einstein previu no século passado que, se as abelhas desaparecessem da superfície da Terra, o homem teria apenas mais quatro anos de vida. A morte em grande escala desse animal, interpretada como apocalíptica na época, é hoje um alerta real. Desde o começo do século, casos de morte e sumiço de abelhas são registrados nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, estudiosos destacam episódios alarmantes a partir de 2005.

Agora, o fenômeno parece chegar ao ápice. Nos últimos três meses, mais de 500 milhões de abelhas foram encontradas mortas por apicultores apenas em quatro estados brasileiros, segundo levantamento da Agência Pública e Repórter Brasil. Foram 400 milhões no Rio Grande do Sul, 7 milhões em São Paulo, 50 milhões em Santa Catarina e 45 milhões em Mato Grosso do Sul, segundo estimativas de Associações de apicultura, secretarias de Agricultura e pesquisas realizadas por universidades.

O principal causador, afirmam especialistas e pesquisas laboratoriais analisadas pela reportagem, é o contato com agrotóxicos à base de neonicotinoides e de Fipronil, produto proibido na Europa há mais de uma década. Esses ingredientes ativos são inseticidas, fatais para insetos, como é o caso da abelha, e quando aplicados por pulverização aérea se espalham pelo ambiente.

As abelhas são as principais polinizadores da maioria dos ecossistemas do planeta. Voando de flor em flor, elas polinizam e promovem a reprodução de diversas espécies de plantas. No Brasil, das 141 espécies de plantas cultivadas para alimentação humana e produção animal, cerca de 60% dependem em certo grau da polinização deste inseto. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 75% dos cultivos destinados à alimentação humana no mundo dependem das abelhas.

Em Cruz Alta, município de 60 mil habitantes no Rio Grande do Sul, mais de 20% de todas as colmeias foram perdidas apenas entre o Natal de 2018 e o começo de fevereiro. Cerca de 100 milhões de abelhas apareceram mortas, segundo a Apicultores de Cruz Alta (Apicruz). “Apareceram uns venenos muito bravos. Eles colocam de avião de manhã e à tarde as abelhas já começam a aparecer mortas”, relata o apicultor Salvador Gonçalves, presidente da Apicruz.

No Brasil, há mais de 300 espécies de abelhas nativas — entre elas Melipona scutellaris, Melipona quadrifasciata, Melipona fasciculata, Melipona rufiventris, Nannotrigona testaceicornis, Tetragonisca angustula. Em todo país, contando com as estrangeiras, há cerca de 1,6 mil espécies do inseto, segundo relatório do Ibama.

Cada espécie é mais propícia para polinização de determinadas culturas. Por exemplo, a Mamangaba, conhecida popularmente como abelhão, é a principal responsável pela polinização de maracujá. “O que aconteceria se esse inseto fosse extinto? Ou deixaríamos de consumir essas frutas, ou elas ficariam caríssimas, porque o trabalho de polinização para produzi-la teria que ser feito manualmente pelo ser humano”, explica Carmem Pires, pesquisadora da Embrapa e doutora em Ecologia de Insetos.

A estudiosa conta que até em lavouras que não são dependentes da ação direta dos polinizadores, a presença de abelhas aumenta a safra. “Na de soja, por exemplo, é identificado um aumento em 18% da produção. É importante destacar também o efeito em cadeia. As plantas precisam das abelhas para formar suas sementes e frutos, que são alimento de diversas aves, que por sua vez são a dieta alimentar de outros animais. A morte de abelhas afeta toda a cadeia alimentar”.
Agrotóxicos inimigos das abelhas

Os principais inimigos das abelhas são os agrotóxicos neonicotinoides, uma classe de inseticidas derivados da nicotina, como por exemplo o Clotianidina, Imidacloprid e o Tiametoxam. A diferença para outros venenos é que ele tem a capacidade de se espalhar por todas as partes da planta. Por isso, costuma ser colocado na semente, e tudo acaba com vestígios: flores, ramos, raízes e até no néctar e pólen. Eles são usados em diversas culturas como de algodão, milho, soja, arroz e batata.

Além dos neonicotinoides, há casos de mortandade relacionados também ao uso de agrotóxicos à base de Fipronil, inseticida que age nas células nervosas dos insetos e, além de utilizado contra pragas em culturas como maçã, soja e girassol, é usado até mesmo em coleiras antipulgas de animais domésticos. Muitas vezes esse veneno é aplicado em pulverização aérea, o que o expõe diretamente às abelhas. Segundo pesquisa produzida pela Embrapa em 2004, 19% do agrotóxico manejado através do método de pulverização aérea é dispersado para áreas fora da região de aplicação.

Dentro da colmeia as abelhas vivem em sociedades organizadas, com papéis claros. Elas se dividem em castas -- rainha, operárias e zangões. A primeira delas é a única fêmea fértil, é quem coloca os ovos -- cerca de 2,5 mil por dia. Os zangões são os machos e têm como papel fecundar a rainha. Já as operárias são as fêmeas responsáveis por praticamente tudo dentro da colmeia: limpeza, coleta de néctar e pólen, alimentação das larvas (abelhas não adultas), elaboração do mel e defesa do lar. A depender do tamanho da caixa e das condições climáticas, uma única colmeia pode abrigar até 100 mil abelhas.

A morte dos polinizadores por contato com os agrotóxicos pode ocorrer de vários modos. O mais comum é quando a operária sai para a polinização. Muitas acabam morrendo na hora, outras ficam desorientadas e infectadas. A partir daquele momento elas tentam voltar a colmeia, mas muitas não resistem ao caminho. As que conseguem voltar acabam infectando toda colmeia -- o enxame acaba morto em pouco mais de um dia.

Casos cada vez mais agudos

Não existem números oficiais de mortes de abelhas no país, segundo o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Porém, associações de apicultores e órgãos ligados à secretarias estaduais de Agricultura fazem levantamentos próprios.

Entre dezembro do ano passado e fevereiro de 2019, pelo menos 500 milhões de abelhas foram encontradas mortas apenas nos estados de Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Mato Grosso do Sul, segundo apurou a reportagem. Mas o número pode ser muito maior, já que é impossível contabilizar as mortes de abelhas silvestres – aquelas que não são criadas por apicultores.

A maioria dos casos recentes ocorreu no Rio Grande do Sul, onde, segundo a Câmara Setorial de Apicultura da Secretaria de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural do estado, foram 400 milhões de baixas desde dezembro do ano passado. O estado é o maior produtor apícola do país, com mais de 400 mil colmeias, de acordo com a Emater. A produção de mel supera 6 mil toneladas por safra, cerca de 15% do total brasileiro.

A Secretaria recebeu comunicados de óbitos em 10 municípios: Jaguari, Sant’Ana do Livramento, Alegrete, Santiago, Livramento, Bagé, Mata, Cruz Alta, Boa Vista do Cadeado, Santa Margarida. Isso significou mais de 1% das criações de abelhas dizimadas. “O estado tem cerca de 463 mil colmeias. Dessas, cerca de 5 mil foram completamente perdidas. O prejuízo está em torno de 150 toneladas de mel”, conta Aldo Machado dos Santos, coordenador da Câmara Setorial de Apicultura gaúcha.

Por meio de notícias da imprensa, investigações do Ministério Público e estudos científicos, a reportagem identificou casos de mortandade de abelhas em pelo menos dez estados brasileiros desde 2005: Ceará, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

O engenheiro agrônomo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Aroni Sattler é especialista em sanidade das abelhas e trabalha na área desde 1973. Segundo ele, casos de mortes de enxames se tornaram mais recorrentes na última década. “Devido ao meu trabalho, sempre recebi amostras de abelhas para análises, e vim percebendo que cada vez mais não havia sinais de doenças nos insetos que explicassem mortandades tão agudas”, explica.

No ano passado, ele foi procurado pelo Bioensaios, um laboratório privado, para orientar um trabalho sobre coleta de amostras em casos de mortandade. Foram analisados 30 casos de grandes baixas em enxames no Rio Grande do Sul. Os resultados mostram que cerca de 80% ingeriram ou tiveram contato com Fipronil antes de sucumbir. “Pelos sinais clínicos e pelo histórico apresentado pelos apicultores, percebemos que os agricultores da região misturavam o Fipronil no tanque junto com dessecantes desde o preparo do solo, passando pela fase vegetativa do cultivo e depois na hora da colheita. Se trata de um inseticida, e as abelhas são um tipo de inseto, por isso o ingrediente é bastante tóxico para elas”, detalha.

O especialista aponta que, mesmo naquelas que não apresentaram vestígio dos agrotóxicos, pode ter ocorrido contato. “Nos outros 20% é notado que a coleta das amostras não foi feita adequadamente, ou foi feita em um período muito longo após a mortandade, o que dificulta a identificação dos tóxicos”.

Quem é o culpado?

Desde que começou a fazer análises de abelhas mortas, o engenheiro agrônomo Aroni Sattler emitiu 30 laudos para apicultores do Rio Grande do Sul que comprovam o contato dos insetos com pesticidas. A partir daí eles podem levar os casos à Justiça e buscar ressarcimento. O especialista alerta para um risco ainda maior, o das abelhas nativas silvestres, pois não há como enumerar quantas estão morrendo e nem denunciar quem aplicou o veneno. “O impacto do uso desses agrotóxicos atinge um raio de 3 a 5 quilômetros das lavouras. Tudo no entorno desaparece”, afirma.

Aroni Sattler destaca também que muitas vezes os desastres ocorrem por falta de informação. “Há casos de mortandade que acontecem porque os agricultores utilizam o agrotóxico de modo errado, ou até mesmo, por falta de conhecimento, eles acham que a abelha prejudica a lavoura e passam veneno”.

O coordenador da Câmara Setorial de Apicultura do Rio Grande do Sul, Aldo Machado, afirma que há necessidade de um trabalho de conscientização: “Precisamos de agrônomos nos campos, acompanhando essas aplicações, vendo se está sendo feito conforme a bula”.

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Sobre realizar as denúncias, ele explica que o canal indicado são as defensorias agrícolas ligadas às secretarias estaduais ou municipais. Além disso, é aconselhável informar a Polícia Militar Ambiental e fazer um boletim de ocorrência na Polícia Civil. “O apicultor tem que vencer o medo e denunciar. Há dois anos, após um grande surto de casos no Rio Grande do Sul, fizemos um levantamento e só existiam dois registros de denúncia. Sabíamos que estava ocorrendo mais, mas sem denúncia não se torna oficial para o Governo”. Só em Cruz Alta, segundo a Associação dos Apicultores de Cruz Alta (Apicruz), 810 colmeias foram totalmente perdidas entre 2015 e 2016 – cerca de 50 milhões de abelhas. Porém, no último trimestre a Apicruz estima que o número de abelhas mortas ultrapasse 100 milhões no município.

Mas, mesmo em casos onde há um laudo que prove a relação das mortes com agrotóxicos, é difícil conseguir identificar um culpado, afirma Aldo Machado. “Em Cruz Alta, por exemplo, há diversos produtores de soja. Existe a dificuldade de provar quem colocou esse princípio ativo na lavoura. Em muitos casos, diversos produtores utilizam o agrotóxico, aí fica difícil encontrar um culpado para cada caso específico”, pontua.

De acordo com a Lei Federal 7.802/89, a Lei dos Agrotóxicos, quem deve fazer a fiscalização do uso são os órgãos estaduais. Portanto, todo problema decorrente do uso desses químicos deve ser informado às secretarias de Meio ambiente ou de Agricultura dos estados.

Há base legal para considerar a morte de abelha como crime ambiental. De acordo com o artigo 56 da Lei de Crimes Ambientais é crime “Produzir, processar, embalar, importar, exportar, comercializar, fornecer, transportar, armazenar, guardar, ter em depósito ou usar produto ou substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou nos seus regulamentos”.

Porém, segundo o Ibama, há grande dificuldade para comprovar que a mortalidade se deu pelo uso em desacordo com as instruções autorizadas no registro. “Quando isso fica comprovado – uso onde não devia, na quantidade que não devia, na época que não devia, usando equipamento que não devia e causando a mortalidade – aí se enquadra no artigo e se trata de crime ambiental”, informa o Instituto, através da assessoria de imprensa.

Milhões de mortes também em São Paulo – e por agrotóxicos

Testes laboratoriais apontaram o contato com agrotóxico como causador da morte de abelhas também no estado de São Paulo, onde a produção de mel chega a 3,7 mil toneladas por safra – cerca de 10% do total nacional. Entre 2014 e 2017, uma pesquisa com a participação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) realizou um mapeamento sobre os fatores que contribuem para a perda de enxames. Em 78 cidades, os pesquisadores contabilizaram 107 produtores que sofreram com perdas de colmeias. Em três anos eles relataram que cerca de 255 milhões de abelhas morreram.

O professor e pesquisador da Unesp Rio Claro Osmar Malaspina, um dos responsáveis pelo trabalho, diz que os casos em São Paulo vêm acontecendo desde 2005. “Eles se acentuam a partir de 2012, e até aquele momento os apicultores não sabiam como, mas todas as abelhas passavam a morrer do nada e em menos de 24 horas. A grande suspeita era de agrotóxicos, mas até aquele momento não tínhamos uma análise para provar isso”.

O projeto começou em 2013 com patrocínio de empresas produtoras de agrotóxicos. Batizado de Colmeia Viva, o projeto recebeu um telefone 0800 para denúncias. Quando uma abelha morria, o apicultor ligava e fazia a queixa. “Após a análise, entregamos um laudo para cada criador, que era público. E ele poderia usá-lo para entrar com ação na Justiça”, explica.

O relatório do mapeamento foi lançado no ano passado com conclusões voltadas para a criação de um plano de ação nacional para boas práticas de aplicações de agrotóxicos. O objetivo é manter uma relação produtiva entre a agricultura e a apicultura, sem que nenhuma das duas áreas saia enfraquecida.

A iniciativa contou com 222 atendimentos voltados a apicultores, das quais 107 originaram visitas ao campo. Em 88 ocorreram coletas de abelhas para análise focada na relação com a aplicação de agrotóxicos. Em 59 casos – cerca de 67% – o resultado foi positivo para resíduos de pesticidas. Em 27 casos, a hipótese é que a aplicação de tóxico tenha sido feita fora da lavoura onde a colmeia fica, e em 21 casos a suspeita é de uso incorreto dentro da própria residência (11 destes foram causados por produtos à base de neonicotinoides e 10 à base de Fipronil).

O grupo também fez um trabalho educativo com agricultores, ensinando modos de aplicação de pesticidas que diminuam o impacto em abelhas. “Nos últimos meses estamos percebendo uma queda nas ocorrências de mortandade, mas ainda temos que esperar mais alguns anos para fazer um novo estudo que confirme isso e nos mostre os motivos”, explica. Nos últimos dois meses as baixas em colmeias foram reduzidas para cerca de 25.

Reavaliação de agrotóxicos

Em decorrência dos casos de mortandade de abelhas, o Ibama deu início em 2012 à reavaliação de diversos ingredientes químicos usados em plantações. O primeiro está sendo o neonicotinoides Imidacloprid, o mais usado do grupo. Empresas declararam ao Ibama a comercialização de 1.934 toneladas de Imidacloprido só em 2010. Simultaneamente, o Instituto está reavaliando também os neonicotinoides Clotianidina e o Tiametoxam, e ao fim dos três processos iniciará os testes com o Fipronil.

Em 19 de julho de 2012 o Ibama chegou a proibir a pulverização aérea do ingrediente ativo Imidacloprid. O órgão determinou também que todos os produtos deveriam conter nas embalagens o seguinte aviso: “Este produto é tóxico para abelhas. A aplicação aérea NÃO É PERMITIDA. Não aplique este produto em época de floração, nem imediatamente antes do florescimento ou quando for observada visitação de abelhas na cultura. O descumprimento dessas determinações constitui crime ambiental, sujeito a penalidades”. Porém, o Ministério da Agricultura alegou que a aplicação aérea do Imidacloprid era imprescindível para determinadas culturas. Com isso, três meses depois, ficou autorizada a pulverização para culturas de arroz, cana-de-açúcar, soja, trigo e algodão.

Tendo em vista que os agrotóxicos mais nocivos às abelhas estão sendo reavaliados, passando agora pela Avaliação de Risco, o Ibama criou em 2015 um Grupo Técnico de Trabalho para discutir os procedimentos a serem adotados para proteger especificamente as abelhas. O grupo se reúne bimestralmente e conta com 13 participantes vindos do setor acadêmico, da Embrapa, da Indústria e também do Ministério do Meio Ambiente. Sua missão é propor uma avaliação obrigatória de risco de agrotóxicos para abelhas. Porém, não há previsão de quando isso ocorrerá.
Ministério Público Federal cobra respostas

Há procedimentos em curso sobre a morte de abelhas em cinco procuradorias estaduais, no Distrito Federal, Goiás, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, segundo a Procuradoria-Geral da República. A Agência Pública teve acesso a documentos relativos a dois desses casos.

No Rio Grande do Sul, há uma ação civil pública tramitando na 9ª Vara Federal de Porto Alegre. A ação foi ajuizada em outubro de 2017 contra o Ibama, para obrigar a autarquia a concluir no prazo de seis meses o processo de reavaliação da substância Imidacloprid.

Porém, o Ibama afirma que terá dificuldade de concluir o processo administrativo nesse prazo. Segundo um memorando, o órgão está construindo diversos protocolos de testes, por se tratar de avaliações ainda inéditas no país. A equipe que realiza as reavaliações é composta por apenas cinco analistas ambientais: três biólogos, um químico e um zootecnista. Confira a publicação na íntegra aqui.

Em Mato Grosso do Sul, a Associação de Produtores de Mel de Dourados entrou com uma representação protocolada em março de 2018 pedindo investigação do MPF/MS. Na justificativa, a associação afirma que os apicultores estão perdendo sua renda e produção por causa das mortes de abelhas “pelo uso indiscriminado e abusivo de agrotóxico nas lavouras de cana de açúcar, soja, milho, arroz e outras culturas agrícolas”.

A representação deu origem a uma Notícia de Fato, uma demanda encaminhada aos órgãos para investigação, e agora o MPF de Mato Grosso do Sul avalia se vai instaurar ou não um procedimento próprio.

Leis para reduzir pesticidas e salvar as abelhas

20 de maio é o Dia Mundial das Abelhas, data criada para lembrar a importância desses insetos para a produção de alimentos em escala global. Elas não são as únicas agentes polinizadoras — pássaros, morcegos, esquilos, besouros e diversos outros contribuem para a reprodução das plantas – mas o grande número e espécies de abelhas as colocam no papel principal.

Para defendê-las, a FAO/ONU, em parceria com a Organização Mundial de Saúde (OMS), elaborou o Código Internacional de Conduta para o Manejo de Pesticidas. A organização destaca, entretanto, que sem a diminuição do uso de agrotóxicos as abelhas continuarão em risco. “Não podemos continuar nos concentrando em aumentar a produção e a produtividade com base no uso generalizado de pesticidas e produtos químicos que ameaçam os cultivos e os polinizadores”, alertou o diretor-geral da agência da ONU, José Graziano da Silva.

A passos lentos, alguns países vão adotando leis para salvar os zangões, rainhas e operárias. O Fipronil já é proibido em toda a União Europeia há mais de uma década. Em 2004, ele foi banido da França após ações que denunciavam o impacto do veneno — naquele ano, cerca de 40% dos insetos criados nos apiários franceses foram encontrados mortos. Os neonicotinoides entraram em discussão logo depois. Em 2013 tiveram os registros congelados por dois anos, e em 2018 veio o banimento permanente.

Até os Estados Unidos caminham na mesma direção. Em 2013, um relatório do Departamento de Agricultura americano (USDA) mostrou que quase um terço das abelhas de colônias do país morreram durante o inverno de 2012/2013. No ano seguinte, o então presidente americano Barack Obama proibiu o uso de neonicotinoides em áreas de vida selvagem.

Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de Agrotóxicos no Brasil. A cobertura completa está no site do projeto.

O cientista que o sistema eliminou

As teorias científicas, em geral, são rejeitadas pelo sistema, quando surgem. Porque contestam o que está estabelecido, na ciência e na sociedade. A confirmação da teoria vem com o tempo, quando suas ideias são incorporadas pela própria ciência, pela sociedade, pelo senso comum. Basta pensar na psicanálise, que foi execrada quando surgiu, mas hoje está incorporada até à linguagem popular. Reich foi rejeitado pelo próprio Freud; morreu na masmorra, seguindo a tradição dos hereges, dos loucos, dos visionários, dos lúcidos, enfim. Lucidez não é uma característica da sociedade humana, o Brasil contemporâneo é uma prova disso.

Retrato de Wilhelm Reich
Publicado pela BBC Brasil.

Wilhelm Reich: Os controversos tratamentos sexuais de um dos psicanalistas mais radicais da história

Nos anos 1920, o austríaco Wilhelm Reich (1897-1957) era considerado um dos discípulos mais promissores do pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939). Ele morreria décadas depois em uma prisão dos Estados Unidos, sob acusações de fraude e suspeitas de promover atividades sexuais ilícitas.

Mas sua obra, que chegou a ser banida pelo governo americano, seria peça-chave para o movimento da contracultura nos anos 1960. Muitos o consideram, inclusive, o inspirador da revolução sexual e dos protestos de maio de 1968 na França - os atos foram iniciados por movimentos estudantis e ganharam a adesão de trabalhadores, levando a uma grande greve geral que abalou politicamente o país.

Hoje, Reich segue tendo muitos adeptos entre os seguidores de correntes de pensamento alternativas. Mas o que fazia esse psicanalista e por que ele continua a despertar tanta controvérsia tanto tempo depois?

Reich é considerado nos dias de hoje uma ovelha negra dentro da psicanálise tradicional, mas nem sempre foi assim. Com apenas 23 anos, ele foi aceito como membro da prestigiada Sociedade Psicanalítica de Viena, fundada por Freud.

Foi o próprio criador da psicanálise que levou o jovem à instituição para que tratasse seus pacientes em uma clínica ambulatorial que ele criou na capital austríaca.
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Nessa época, Freud já havia desenvolvido sua teoria sobre a neurose e atribuído sua origem à repressão sexual. Reich levou o conceito além e propôs que a repressão se dava não apenas no plano psíquico, mas também no físico.

Ele acreditava que o corpo respondia à repressão gerando tensão muscular, o que, com o passar do tempo, se traduzia em dores crônicas e doenças. Dizia que era uma "armadura" ou uma "couraça" que moldava o físico e o caráter do indivíduo e determinava como essa pessoa encarava sua existência.

O conceito despertou interesse, mas Reich propunha uma solução radical para o problema: a repressão deveria ser combatida não apenas verbalmente, como ensinava Freud, mas também fisicamente. Com esse objetivo, desenvolveu uma terapia que rompeu com uma das doutrinas básicas da psicanálise: a neutralidade entre o profissional e seu paciente.

A vegetoterapia e denúncias de abuso

Batizado de vegetoterapia, o método consistia em realizar massagens em seus pacientes seminus para dissolver o que Reich chamou de "armadura muscular" ou "armadura de caráter".

Isso gerou um escândalo, e alguns de seus ex-pacientes até mesmo denunciaram que as massagens feitas em todas as partes do corpo onde o terapeuta dizia detectar tensão equivaliam a uma forma de abuso.

Não foram apenas as massagens que geraram controvérsia: havia a teoria por trás delas. O objetivo da vegetoterapia era liberar a energia sexual reprimida, que, segundo Reich, era a causa de muitos dos males da sociedade, incluindo o nazismo.

Ele acreditava que a armadura corporal impedia a pessoa de alcançar um orgasmo completo e, por isso, não conseguia livrar-se de suas repressões. Reich escreveu que, quando uma sessão era bem-sucedida, podia ver ondas de prazer atravessando o corpo do paciente, o que chamou de "reflexo orgásmico".

Mas a principal forma de liberação de energia reprimida proposta por ele eram as relações sexuais, que permitiriam a uma pessoa se tornar livre - isso transformaria sociedades e o mundo. Com esse propósito, criou várias clínicas sexuais e advogou pelo sexo, inclusive entre adolescentes.

Em 1927, escreveu A Função do Orgasmo, explicando sua teoria. Foi a promoção do que chamou de "revolução sexual" que consolidaria décadas mais tarde sua fama como visionário e tornaria seu livro uma bíblia dos intelectuais dos anos 1950 e 1960.

Mas, nos anos 1930, suas ideias radicais o tornaram um pária e o levaram a ser expulso da Sociedade Psicanalítica de Viena.

A descoberta da 'energia vital do orgasmo'

Em 1939, perseguido pelo nazismo, Reich fugiu para os Estados Unidos, onde começou uma nova etapa de sua carreira que atrairia ainda mais críticas e ceticismo da comunidade científica.

Reich queria comprovar que sua teoria sobre o orgasmo tinha uma base biológica. Para isso, investigou se o conceito freudiano de libido tinha relação com eletricidade ou alguma substância química que atravessava o corpo (uma teoria que o próprio Freud sugeriu e logo abandonou em torno de 1890).

Pouco depois de chegar a Nova York, anunciou que havia descoberto uma forma de energia vital que era liberada durante o orgasmo e anunciou o nascimento de uma nova ciência: a orgonomia.

Essa forma de energia foi chamada por ele de "orgone" (derivado de "orgasmo" e "organismo"), descrito por ele como de cor azul, por meio de um microscópio e no céu, com um telescópio especial criado por ele, o organoscópio.

Segundo Reich, o orgone estava por todos os lados e era a mesma energia espiritual que outros chamavam de Deus. Reich acreditava que, quando essa enegia estancava ou diminuía, causava decadência, enfermidade e morte.

Por isso, a partir de 1940, ele começou a desenvolver "acumuladores de orgone": caixas ou cápsulas que atuariam como bloqueadores de campos eletromagnéticos, permitindo que dentro do espaço se concentrasse a "energia orgônica".

A pessoa deveria entrar no acumulador, idealmente nua, e permanecer ali pelo maior tempo possível para obter benefícios que, segundo Reich, incluíam curar o câncer.

Os curiosos objetos começaram a atrair interesse, e a imprensa não tardou em ridicularizar o austríaco, chamando seus inventos de "caixas sexuais".

Para demonstrar que sua descoberta era rigorosa cientificamente, Reich conseguiu que o renomado físico alemão Albert Einstein (1879-1955) pusesse seus inventos à prova. Em 13 de janeiro de 1941, ele levou um pequeno acumulador para Einstein, que o investigou por dez dias em seu sótão.

Ainda que no começo o físico tenha notado uma diferença de temperatura dentro da caixa, que Reich atribuía à presença do orgone, ele concluiu no fim que o fenômeno era causado pela diferença de temperatura no ambiente.

"Por meio desses experimentos, considero o assunto completamente encerrado", escreveu Einstein a Reich em 7 de fevereiro do mesmo ano.

Acusação de fraude e prisão antes da morte

O resultado não dissuadiu Reich, que, em 1942, comprou uma fazenda no Estado de Maine (EUA), onde se dedicou a criar mais acumuladores e outras invenções relacionadas à energia orgônica.

Seus empreendimentos atraíram a atenção da Food and Drugs Administration (FDA), órgão americano equivalente à Anvisa no Brasil, que acusou o austríaco em 1947 de estar por trás de uma "enorme fraude". As autoridades também suspeitavam que ele poderia estar promovendo atividades sexuais ilícitas.

Em 1954, a Justiça ordenou a destruição de 250 acumuladores e a incineração de toda a obra de Reich, incluindo A Função do Orgasmo e Psicologia de Massa do Fascismo, um livro escrito por ele em 1933 e que teria um papel chave nos protestos de 1968 na França. Muitos historiadores consideram esse um dos piores casos de censura da história americana.

Quando um sócio de Reich vendeu um acumulador a uma pessoa em outro estado, violando a ordem judicial, o inventor foi detido e condenado a dois anos de prisão.

Em 1957, quase oito meses depois de ser preso e prestes a conseguir sua liberdade condicional, Reich morreu após sofrer um infarto, aos 60 anos de idade.

Em um obituário, a revista americana Time disse que ele havia sido "um psicanalista famoso, discípulo de Sigmund Freud", mas que, em tempos recentes, havia ficado "mais conhecido por suas teorias pouco ortodoxas sobre o sexo e a energia".

No entanto, autores como Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William S. Burroughs se basearam nas teorias de Reich, lançando as sementes da revolução sexual dos anos 1960.

Hoje suas ideias podem ser encontradas em várias disciplinas, desde a terapia Gestalt e a bioenergética aos tratamentos com orgonites, objetos que seriam capazes de transformar energias negativas em positivas e que são populares em alguns grupos espirituais.

A fazenda onde Reich viveu e foi enterrado é hoje um museu e segue como um popular destino de peregrinação para seus seguidores.