Frei
Beto (vai assim mesmo, com um tê só, porque não gosto dessa coisa
de letra dobrada e acho que não combina com ele) escreveu num artigo
publicado no Diplô (Le Monde Diplomatique Brasil) neste começo de
maio ideias boas, lúcidas e ingênuas. “Políticas sociais
mudam a cabeça do povo?”, pergunta no título,
que pode ser lido exclusivamente por assinantes clicando aqui.
Admiro o frei e sua rica história do lado do bem, mas tenho
dificuldade de entender suas ideias, que expressam uma espécie de
ingenuidade dos melhores bem-intencionados da nossa geração.
Esse negócio de geração é engraçado. Não faço parte da
geração de frei Beto, sou um tanto mais novo que ele, pertenço à
geração de 1977, não vivi 1968, ano que mudou radicalmente o
século XX. Só nove anos separam os acontecimentos que nos marcaram,
mas foi um novênio suficiente para nos colocar em gerações
diferentes. Ao mesmo tempo, a diferença de idades é insuficiente
para que meu xará fosse, digamos, meu pai. Minha geração é muito
diferente da geração do meu pai e foi a “geração” de frei
Beto, que não podia ser meu pai, mas é um pouco velho para ser filho do meu pai, que criou a ruptura entre as gerações, de forma que
rompemos com nossos pais, ainda que continuássemos vivendo como eles
(segundo Belchior, ele próprio da geração do Beto), nos espelhando
na geração de 1968.
A relação da geração de 1977 com a geração de 1968 – e
aqui me refiro especialmente à geração universitária, porque foi
no movimento estudantil principalmente que a geração do meu xará e
a minha se expressaram – foi muito forte, inspiradora e castradora
ao mesmo tempo. Nossos “irmãos mais velhos”, digamos assim,
foram à guerra, lutaram, voltaram ou morreram como heróis e nós os
vimos lutar e ouvimos contar suas histórias. Crescemos admirando-os,
antes do desfecho inglório da sua luta, e venerando-os em seguida.
Frei Beto é só um daquela época que teve heróis guerrilheiros
como Fernando Gabeira, Guilherme Palmeira e José Dirceu, entre
tantos outros, para citar os vivos, que preparavam a revolução
iminente e cuja influência mais profunda veio pela música popular,
cujos heróis eram Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Mutantes e muitos, muitos mais, isso sem falar nos estrangeiros.
Enquanto nossos heróis iam à guerra, nós ainda brincávamos e
os admirávamos pela televisão. De repente, sumiram, mudaram de país
ou de estilo musical. Outro Brasil nos era apresentado nos meios de
comunicação, escolas e instituições, mas a gente sabia que nossos
heróis continuavam ativos – no exílio ou na clandestinidade.
Naquele novênio vivemos na mais completa ignorância e
obscurantismo, tudo de bom com que tínhamos contato era dito ou
mostrado de forma cifrada, sub-reptícia, camuflada, num armazém
alternativo de Secos & Molhados montado por Novos Baianos num
Clube da Esquina… E quem é que nos instruía, em discos, shows,
peças, filmes ou organizações clandestinas? Nossos irmãos mais
velhos sobreviventes de 1968.
Escrevo tudo isso para esclarecer como foi importante a relação
da minha geração com a geração de 1968. Nós, que em 1977
lideramos a retomada da contestação à ditadura militar, com
valentes movimentos estudantis, fomos terrivelmente submissos aos
nossos veneráveis irmãos mais velhos. Nós estávamos na linha de
frente, mas éramos profundamente ignorantes, e não podia ser
diferente, depois de treze anos de ditadura, de nove anos de censura
e repressão cruel, e quem pensava por nós eram eles, os
sobreviventes de 1968.
Só um pouco depois de 1977, os mais jovens de nós – que também fazem parte da nossa geração, mas eram nossos irmãos caçulas, digamos assim (eles sim talvez pudessem ser filhos da geração de 68) – se diferenciaram e afirmaram a personalidade própria da nossa geração, que se traduziu no chamado rock Brasil dos anos 1980, cuja estrela maior é Cazuza. É verdade que Asdrúbal Trouxe o Trombone é uma das mais excelentes expressões da minha geração e antecede 1977, mas em BH a personalidade da geração de 1977 explodiu quando o movimento estudantil refluía e já tinha cumprido seu papel. Politicamente, a expressão da minha geração é a chapa Roseta, lançada para o D.A. Fafich por Edwaldo Zampier, quem melhor compreendeu aquele momento, e na sequência a chapa Onda, vitoriosa no DCE UFMG – sucessos efêmeros. Na arte, o Grupo Galpão foi quem expressou melhor as inquietações nem um pouco stalinistas da nossa geração – sucesso duradouro.
Ouso dizer que nossos irmãos mais velhos, com toda sua rebeldia e
seu heroísmo, formaram, porém, a última geração stalinista. Sim,
porque o stalinismo estava definhando, o próprio tinha falecido em
1953, mas sua influência no pensamento marxista foi e era ainda
capital; a geração de 1968, crítica do stalinismo, desgraçadamente seguiu sendo stalinista e em parte o é até hoje. Nossos irmãos mais velhos, que tinham vivido experiências
de uma época gloriosa – os anos 60 – que nós não vivemos nos
transmitiram essa herança nefasta.
Em 2023 as marcas do stalinismo permanecem nas lúcidas e
bem-intencionadas reflexões de frei Beto. Afinal, o que se pode
dizer de um homem do nosso tempo que se cala sobre as mazelas da revolução
cubana, conhecendo a ilha e seu regime de perto e por dentro, num
convívio de mais de meio século? Eu, que nunca estive lá, mas, de
cá, leio o que posso e acima de tudo a brilhante literatura de
Leonardo Padura, sei que também em Cuba o socialismo fracassou. O
primeiro passo da atividade intelectual é aceitar a realidade, é
não se negar a ver a verdade. Vamos em frente, podemos até
continuar defendendo Cuba, o socialismo, a revolução, o marxismo,
mas comecemos reconhecendo o óbvio. Qualquer outra postura é
ideológica, é religião, não é conhecimento.
Está certo, meu xará é religioso, cristão, católico, soldado
da igreja católica, posição que concilia com o marxismo e o
socialismo. Não vejo problema nisso também, compreendo o ambiente
que contempla valores cristãos num “comunismo primitivo” e
aproxima as duas ideologias. A questão fundamental para mim é que
já passou da hora da geração de 1968 amadurecer intelectualmente.
A realidade é dura, o mundo caminha entre catástrofes para o
abismo e não dá para ficar brincando de revolução nem para
continuar militando em seitas maniqueístas. Precisamos urgentemente
enxergar a realidade para agir nos limites do possível e do razoável
e tentar salvar o planeta para as futuras gerações. Construir,
enfim, um mundo sapiens no sentido exato do nome: um mundo sábio.