quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Democracia acima de tudo

(Republicado, por ser oportuno. Publicado originalmente no jornalaico wp em 27/10/18. Aparentemente, a vitória do Lula, representando uma frente ampla, que tem Alckmin como vice e ganhou apoio geral dos democratas, inclusive das corporações de mídia, Globo e Folha à frente, expressa o que pedia esse texto, há quatro anos. Lula é um sujeito afortunado, por poder voltar à presidência depois de tudo que passou, mas nós, brasileiros, não o somos menos, olhando em retrospecto, por conseguir sobreviver à experiência autoritária da extrema direita e voltar à democracia. Devemos pensar nisso e agradecer, em memória dos quase 700 mil mortos na pandemia.)

Como morrem as democracias 

No começo de setembro deste ano [2018], há menos de dois meses, portanto, e antes do primeiro turno da eleição presidencial, a Fundação FHC recebeu o cientista político americano e professor na Harvard University Steven Levitsky para uma palestra. “Como morrem as democracias” foi o título da exposição. Impossível ser mais claro.

A palestra de Steven Levitsky foi brilhante e merece aplausos — clap, clap, clap, como diria o saudoso Paulo Nogueira. Sua recomendação foi explícita: políticos democratas tradicionais devem se unir contra um líder com vocações autoritárias que, uma vez no poder, tratará de matar a democracia.

No caso brasileiro, o conselho se aplicava aos irmãos siameses PSDB e PT e o líder autoritário evidente era o capitão da reserva. No entanto, nem FHC — que estava do seu lado — ouviu, nem Lula — este em condições bem piores, encarcerado, lutando por sua sobrevivência, ao contrário do bon vivant tucano.

Mais do que dar uma aula para brasileiros tão ilustres quanto cegos, Levitsky viu ao vivo sua tese ser confirmada nesta exótica nação tropical. Vale a pena ouvir sua conferência.

Há algumas semanas, horrorizado com o governo Temer, eu pensava que qualquer presidente legitimado pelo voto, compromissado com o eleitorado, seria melhor. Hoje percebo que estava sendo ingênuo. Qualquer presidente eleito, que não toma o poder pelo golpe, como tomou Temer, é melhor, desde que tenha compromisso com a democracia.

O capitão da reserva chegará ao poder, se as pesquisas se confirmarem, com o compromisso oposto, de acabar com a democracia. Ele não esconde isso; mais do que indicadores autoritários, como sugere Levitsky, o candidato da extrema direita afirma claramente seus propósitos ditatoriais. E mesmo assim está sendo apoiado por políticos de direita e centro, ainda assim talvez receba os votos da maioria.

Essa situação torna o Brasil um caso único na história da humanidade, que eu saiba, de um candidato a ditador que chega ao poder eleito pela maioria. Nem Hitler foi assim. Ou nem Chávez. Como disse Levitsky, políticos tradicionais abrem as portas para os líderes autoritários, mas Hitler não foi eleito pela maioria, ficou em segundo lugar, foi o presidente eleito, Hindenburg, quem o convidou para chefiar o governo. Quando o partido nazista ganha a eleição, em 1933, Hitler já estava no poder — a eleição confirmou seu poder absoluto.

Chávez, por sua vez, defendia bandeiras populares. O capitão da reserva, ao contrário, defende bandeiras antipopulares!

Hoje, na véspera do segundo turno, o conselho de Levitsky é tão óbvio quanto tardio, mas não inútil. Os políticos democratas brasileiros precisam se unir novamente, como fizeram durante a ditadura de 64-85, para resistir ao autoritarismo e formular um novo projeto democrático que supere divergências secundárias e conquiste o apoio popular. As condições para isso se tornaram muito mais difíceis, mas não há outra caminho para aqueles que são comprometidos com a democracia e têm lucidez.

O Brasil experimentou nos últimos 33 anos (a idade de Cristo!) uma farra democrática. O Congresso tem dezenas de partidos que mal se distinguem em propostas para a nação e se igualam na venalidade. Diante da morte, a mente se torna clara e distingue o principal do acessório; diante da ditadura que se avizinha, que diferença fundamental há entre tucanos e petistas? Qualquer candidato, até mesmo Meireles, seria preferível ao que está prestes a se tornar presidente. Por que os democratas não viram isso?

A resposta a essas perguntas é que nós, brasileiros, não temos compromisso com a democracia.

Oportunistas de direita tentarão — e já tentam nesse segundo turno — se acomodar à nova situação; querem ser amigos do ditador. Míopes da esquerda, acostumados por décadas de democracia a desprezar composições e papéis subalternos, precisarão ter humildade para sobreviver.

Democracia é a questão fundamental, e é preciso ter compromisso com ela, defendê-la acima de tudo — acima de convicções como luta de classes, socialismo, revolução etc. É preciso afirmar a democracia como princípio, como valor, e como fim, não como meio, nem com adjetivos, como “democracia popular” ou “democracia relativa”.

A esquerda brasileira não está preparada para defender a democracia, e a direita, sempre que testada, demonstra que não tem apreço por ela. O povo, que não é de direita nem de esquerda, segue aquele que lhe parece mais sincero ou mais capaz de lhe proporcionar uma vida melhor. E, como se vê neste 27 de outubro, pode se enganar.

É preciso lembrar, porém, que esse engano vem depois de quatro acertos sucessivos, e que quem o enganou primeiro foram os candidatos de 2014 — a eleita, adotando o programa do derrotado; o derrotado, rejeitando o resultado das urnas. Se os políticos preferidos pelo povo não respeitam a vontade do povo, por que o povo os respeitaria? Como exigir que o povo seja mais lúcido do que seus líderes?

Mais do que isso. Os brasileiros passaram quatro anos ouvindo da mídia, dos políticos, dos procuradores, dos juízes e dos tribunais que o PT é a pior coisa que existe. Agora, no espaço curtíssimo de três semanas, entre o primeiro e o segundo turnos, tentam mostrar para nós que o capitão da reserva é pior do que o PT. Ou seja: existe uma coisa pior do que a pior coisa que existe! Como assim?

É possível que, colocado pelo golpe de 2016 diante da rejeição ao PT — chamado incansavelmente de corrupto por políticos, procuradores, juízes e mídia igualmente corruptos ou mais –, o povo brasileiro, na sua maioria, optasse por uma solução não autoritária — o candidato democrata –, mas essa opção não lhe foi oferecida. A eleição se tornou o enfrentamento entre o antipetismo e o petismo.

Se o resultado das urnas amanhã for diferente, o povo brasileiro merece um lugar no altar da democracia mundial. Eu acredito até o último momento, mesmo porque se pesquisa fosse eleição, a gente não precisava ir votar, mas uma possível vitória de Haddad, embora signifique um alívio, está longe de afastar o fantasma do autoritarismo que ganhou proporções assustadoras no último quadriênio.

Seja qual for o resultado das urnas, em condições melhores ou piores, é preciso construir no Brasil uma convicção democrática. A democracia precisa ser a melhor opção para a maioria, para a imensa maioria, de forma que minorias autoritárias não passem disso, minorias, e não a ponham em risco.

É preciso construir uma sociedade com instituições comprometidas com a democracia.

É preciso que o povo compreenda que o melhor para ele é a democracia, é preciso que as elites compreendam que o melhor para elas é a democracia.

É preciso que os trabalhadores compreendam que o melhor é a democracia e que os empresários também compreendam isso.

É preciso que as Forças Armadas estejam comprometidas com a democracia, que as polícias estejam comprometidas com a democracia, que promotores e procuradores esteja também, que juízes, desembargadores e ministros estejam.

É preciso que a imprensa e todas as mídias sejam comprometidas com a democracia.

Que os velhos valorizem as três décadas de democracia nas quais viveram e que os jovens cresçam aprendendo que a democracia é um princípio do qual não podem prescindir.