Sinto que tenho o privilégio de fazer parte das gerações humanas que vão presenciar o fim do mundo. Testemunhei em sete décadas tantos acontecimentos tão graves e tantas mudanças tão grandes que parecem inacreditáveis. As pessoas vivem como se não vissem o que está acontecendo. São incapazes de tomar atitudes para evitar o que está acontecendo. São incapazes de reagir e mudar as suas próprias vidas.
A mudança mais impressionante na contemporaneidade é o celular. Crianças e jovens não conseguem imaginar um mundo sem celular. No entanto, há pouco mais de três décadas nós vivíamos sem celular, sem internet, sem computador. Apareceu o computador, apareceu a internet, apareceu o celular, ficamos todos deslumbrados, mas nós, pessoas comuns, consumidores, gente pobre, simples e ignorante de um país da periferia do capitalismo terráqueo, não podíamos imaginar que as três invenções se juntariam numa só, que todos nós teríamos acesso a essa riqueza prodigiosa, muito menos imaginar o principal: que nos tornaríamos todos dependentes dela, adoradores dela, que nossa vida se tornaria impossível sem ela. (É claro que havia sim uma pequena elite com conhecimentos científicos e tecnológicos e capital abundante pensando e preparando o que estava por vir, uma elite que hoje domina o mundo.)
Olho à minha volta em todos os lugares e o que vejo são pessoas olhando para seu celular, segurando seu celular, digitando no seu celular, falando no seu celular, escutando seu celular. Raramente encontro, em qualquer lugar, alguém que não tenha um celular na mão ou no bolso, que não esteja lhe dando mais atenção do que dá ao que está à sua volta. As relações entre os indivíduos hoje são intermediadas pelo celular. Tudo que fazemos passa por ele, não ficamos uma hora sem olhar para ele, sem pegá-lo, sem usá-lo. Todas as nossas atividades e todas as nossas relações sociais agora passam pelo celular. Sem ele, o mundo para.
Nem todo mundo tem casa – o fenômeno dos moradores de rua é espantosamente crescente e não se limita às miseráveis cidades brasileiras, atinge as nações mais ricas. Nem todo mundo carro – embora existam muito mais do que é razoável e, aparentemente, pela quantidade no trânsito, todo mundo tem moto, embora transportes coletivos de qualidade sejam a solução lógica para o deslocamento moderno; nisso também a China é um exemplo para o mundo. Nem todo mundo tem esgoto, luz, água encanada, emprego, comida, família, mas todo mundo tem celular. Um bem que há algumas décadas apenas sequer existia tornou-se mais necessário do que uma boa roupa ou um bom sapato. Sim, porque às vezes o indivíduo veste-se e se calça mal, mas o celular é de última geração. Ao contrário de tudo mais que os seres humanos consomem e que os diferencia entre ricos, pobres e riquíssimos, entre miseráveis e milionários, o celular precisa ser novo, moderníssimo, para funcionar adequadamente e oferecer os benefícios que as pessoas buscam nele, de forma que, como num passe de mágica, todos conseguem ter um celular de último modelo ou, no máximo, de penúltimo, herdado de quem comprou um mais moderno. Além do que, eles logo se tornam obsoletos, são programados para durar pouco e nenhum vai durar tanto quanto, digamos, um antigo telefone fixo, que era o mesmo durante décadas…
Há apenas três décadas, num tempo que costumamos contar em três milênios ou até bem mais, sete, dez, considerando as civilizações antigas do Oriente, o celular inexistia e hoje ninguém vive sem ele, todos dependemos dele e cada vez mais, ele é a coisa mais importante da nossa vida. Mais importante que uma filha, um filho, uma mãe, um pai, um irmão, uma irmã, um avô, uma avó, um neto, uma neta, um primo, uma prima, um amigo, uma amiga um vizinho, uma vizinha, um empregado, uma empregada, um colega, uma colega, considerando o critério da atenção que dispensamos diariamente a qualquer um desses seres humanos e ao celular. O nosso celular é o ente mais querido das nossas vidas, pelo critério do tempo e da atenção que dedicamos.
Acho que isso é horrível para o que de melhor ainda existe em nós, humanos, Homo sapiens, nesses tempos terríveis em que vivemos, nesse fim do mundo, como disse no começo, mas, também como disse no começo, penso que não vai mudar, porque as pessoas não reagem diante dos acontecimentos que parecem estar muito além das suas forças, acham que é assim mesmo, que está certo, que aqueles que detêm o poder vão agir, se for preciso, que existem pessoas que detêm o poder, que existe Deus e que ele é onipotente, governa tudo, se for para mudar, ele vai dar um jeito, e se for o fim do mundo, é porque tem que ser.
A adesão das pessoas à ideologia dominante é uma coisa que me impressiona muito. Não tanto pela nossa incapacidade de agir coletivamente, coisa que se tornou comum nesse tempo de “empreendedores”, de destruição dos sindicatos, de aparelhamento dos partidos políticos por grupos religiosos, associações criminosas e espertalhões, de indivíduos conectados a celulares, mas pela incapacidade dos indivíduos de mudarem a sua própria vida particular.
Nesse nosso mundo em que todos buscam o sucesso individual, poucos são aqueles que conseguem distinguir seus próprios interesses pessoais dos interesses da manada, dos interesses que a ideologia dominante dissemina via celulares, redes sociais, aplicativos etc., pouquíssimos são aqueles que estão pensando com sua própria cabeça e conduzindo sua vida para um futuro possível melhor.
Não um futuro imediato, de bens, luxos e prazeres perecíveis, que precisam ser sempre superados e trocados por outros melhores, não esse futuro imediatíssimo de realizações ilusórias, que desmorona diante de uma crise econômica, de uma pandemia, de uma catástrofe climática, mas um futuro sólido, baseado em relações humanas amorosas e na vida na Natureza da qual temos de cuidar.
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