quarta-feira, 19 de outubro de 2022

O bozoísmo em ascensão será derrotado pelo lulismo em decadência?

(Publicado originalmente em 8/9/22.)

Fiquei impressionado com a multidão que afluiu à manifestação convocada pelo inominável ontem, no 7 de Setembro. Me chamou atenção a predominância de gente do povo mais pobre, de pele escura, famílias inteiras vestidas com camisas amarelas de seleção ou com dizeres bozoístas, envolvidas em bandeiras do Brasil. O fenômeno não se limita mais a branquelos de classes preconceituosas e reacionárias, incomodadas pela perda de privilégios, de alguma forma ele alcançou o povo. 

Temo que a nova pesquisa Datafolha desta sexta 9/9 mostre que as intenções de voto no atual presidente continuam crescendo, não sei se mantendo o ex-presidente em posição estável, como nas pesquisas anteriores, ou se com queda deste, o que seria o pior cenário. O melhor cenário, evidentemente, é o crescimento expressivo do Ciro, o melhor candidato.

Primeiro, a direita se apropriou dos símbolos e das cores nacionais, ontem o inominável se apropriou também da data nacional e usou dinheiro público e instituições nacionais para fazer uma manifestação de apoio à sua candidatura, excluindo da comemoração do bicentenário a maioria dos brasileiros. Mais um crime de responsabilidade que precisa ser e provavelmente não será punido pelas autoridades coniventes.

O bozoísmo é frequentemente comparado ao fasci-nazismo e é compreensível que o seja, mas é mais importante entender o que ele tem de diferente e novo. O que ele tem de semelhante ao fasci-nazismo pode ser facilmente apreendido, em ideologia, métodos, símbolos, ações, porque já foi muito estudado pela ciência política e pela história, na época e depois. O que ele tem de novo precisa ser estudado e compreendido agora, o que é muito mais difícil, não só porque é novo, mas também porque está acontecendo agora.

Temos dificuldade de compreender as coisas quando elas estão acontecendo, em geral as compreendemos pelas suas consequências. O desafio é perceber as consequências ao mesmo tempo em que elas acontecem. Exige esforço e pesquisa de dados, o que hoje é facilitado pela tecnologia. A maior dificuldade é escapar à influência da ideologia para olhar para as coisas certas.

O bozoísmo, na manifestação de ontem, gritava, do alto de um trio elétrico, slogans como “acabar com o comunismo”. Comunismo? Onde? Quem? Como é que esse movimento alucinado consegue mobilizar pessoas para combater, na terceira década do século XXI, um movimento do século XIX que acabou no século XX e foi enterrado há mais de trinta anos?

Mais do que nunca, vale hoje, com outra interpretação, a frase inicial do Manifesto Comunista, que diz que um espectro ronda a Europa; o que Karl Marx e Friedrich Engels usaram como figura de linguagem há 170 anos, agora é mesmo um fantasma. Seria exagero afirmar também que comparar o bozoísmo ao fasci-nazismo é também evocar um fantasma?

A grande diferença entre o fasci-nazismo e o bozoísmo é que aquele de fato nasceu para combater a ascensão do comunismo, vitorioso na Revolução Russa de 1917, enquanto no Brasil atual, um século depois, não existem sequer comunistas, o que dizer de comunismo em ascensão? Por que então o apelo funciona?

A dificuldade vem tanto da insistência em se comparar o bozoísmo ao fasci-nazismo quanto da dificuldade de entender o fenômeno anterior do lulismo – o qual, diga-se logo, não tem nenhum parentesco com o comunismo.

Essa dificuldade existe porque grande parte dos nossos intelectuais é contaminada pelo lulismo ou pelo antilulismo. No entanto, como compreender um fenômeno novo sem entender o fenômeno mais antigo e em cujo combate aquele se apoiou para nascer, crescer e se impor?

A questão é: por que evocamos fantasmas para combater seres de carne e osso? Por que apelamos para fenômenos antigos para combater fenômenos novos? Por que essa dificuldade de enxergar condições reais e atuais e entender suas personagens?

Tão preocupante quanto o inominável cometer crimes de responsabilidade e não ser processado e afastado é o fato de um fenômeno de classe média reacionária ter chegado ao povo. Certamente, não é o mesmo apelo aos privilégios perdidos que mobiliza os pobres. O que é então? O que tem o bozoísmo de tão convincente que consegue conquistar camadas populares contra cuja ascensão ele surgiu?

Sim, porque essa é a grande contradição do fenômeno que a intelectualidade da velha imprensa não explica, porque tem suas digitais nele. Tampouco a explica a intelectualidade de esquerda, porque a ideologia a impede de enxergar.

O fenômeno bozoísta é um fenômeno ainda em ascensão, quando o lulismo é um fenômeno em evidente decadência. Não se deve esquecer que Lula deixou o cargo com aprovação de mais de 80% do eleitorado, que o lulismo elegeu e reelegeu um poste e só foi derrotado há quatro anos, quando o grande líder foi preso e impedido de se candidatar.

A mesma maioria que escolheu o lulismo em quatro eleições seguidas mudou surpreendentemente para o bozoísmo em 2018 e o que a eleição deste ano mostra é que não foi um fenômeno episódico, ele continua crescendo, chegou às camadas populares e vai continuar existindo, mesmo se for derrotado pelo lulismo em decadência – será?

O bozoísmo é uma grande força eleitoral em 2022 ainda. Isso é facilmente compreensível, a princípio, basta prestar atenção em fatos.

Em primeiro lugar, todos os presidentes desde a invenção da reeleição por FHC foram reeleitos; esse é o grande crime histórico do ex e único presidente tucano, a compra do Congresso para aprovar a emenda constitucional customizada que possibilitou sua reeleição. Por que o inominável seria exceção?

Se ele conseguiu vencer uma eleição muito mais difícil, programada para possibilitar a volta dos tucanos ao poder, via candidatura Alckmin, esse mesmo que hoje é vice do Lula (o que demonstra de forma inequívoca quanto Lula foi incorporado pelo sistema), por que não venceria uma eleição muito mais fácil, a reeleição?

Não é à toa que os presidentes brasileiros são reeleitos, é porque o controle da máquina pública os torna muito mais poderosos do que seus adversários e desequilibra a disputa. A máquina pública brasileira é pouco democrática e muito ideológica. Tentando equilibrar a balança, o STF e seu braço eleitoral, o TSE, interferem diretamente na campanha, prejudicando o candidato ao qual se opõem; em 2018 tiraram Lula da disputa, dessa vez incomodam o inominável.

Mesmo tendo contra si denúncias e processos de corrupção, o lulismo foi reeleito três vezes. O inominável chegou ao poder carregando uma extensa folha corrida como militar, vereador e deputado, numa trajetória de ascensão ligada ao crime, na qual envolveu seus filhos, sua família e amigos, mas todos permaneceram impunes; fez o pior governo da história brasileira, foi acompanhado de escândalos desde o primeiro dia e cometeu novos crimes como nenhum outro, inclusive e principalmente crimes de morte, não só liberando a matança de adversários políticos em todas as áreas – pobres, pretos, mulheres, ambientalistas, índios, gays etc. – como cometendo genocídio contra seu próprio povo com o descaso irresponsável no combate à pandemia.

O desastre do seu governo dos piores, que tem os piores indicadores econômicos e sociais das últimas décadas, levava à previsão de impeachment ou uma estrondosa derrota eleitoral. O controle simples da máquina pública não seria suficiente para comprar o eleitorado. Entretanto, se manteve no cargo, é candidato competitivo e, se não vencer, seguirá sendo a principal força oposicionista, o que não é pouco.

No poder estaria uma força decadente, que faz esforços enormes e tenta superar dificuldades imensas para voltar ao poder, sendo os principais deles abraçar a direita e reconquistar a simpatia popular. Força que no passado também chegou ao poder cercada de dúvidas e se manteve nele, com quatro vitórias eleitorais sucessivas, até ser derrubado por um golpe.

Da mesma forma como a ilusão democrática não podia ignorar, em eleições passadas, apesar do apoio popular majoritário expresso nas urnas, a oposição das forças reacionárias, não se pode ignorar a existência dessa nova força política pujante. Sem entender as causas do fenômeno e de como ele passou das pouco numerosas classes privilegiadas e reacionárias para as camadas populares, não será possível entender também como e o que o fará refluir e desarmar a eterna bomba da ameaça totalitária.

Compreender as razões da origem e da popularidade do fenômeno bozoísta possibilitará saber quanto tempo ele vai durar. Sem isso não será possível definir políticas de governo que, aparentemente, já começam erradas, quando o lulismo, para voltar ao poder, abraça forças corruptas dominantes na política brasileira na fase pós-ditadura, já que o combate à corrupção foi e continua a ser uma das principais velhas bandeiras do novo fenômeno corrupto.

Será que o entendimento do lulismo e seus aliados é que a corrupção não é um problema real?

Quais seriam então os problemas reais, que a nova aliança liderada pelo lulismo tenta superar?

Como o possível novo governo se prepara para governar no novo ambiente em que a extrema direita é a força oposicionista majoritária? Da mesma forma corrupta de comprar o centrão? Fazendo concessões às velhas forças oposicionistas, isto é, classes médias privilegiadas, empresários reacionários, Judiciário empoderado e a expressão comunicativa de tudo isso, a velha imprensa?

Como ficará nessa configuração o povão que se endireitou? O que o possível futuro governo pretende fazer para cooptá-lo outra vez?

Será possível Lula recuperar a velha popularidade?

Nunca é demais lembrar que os tempos são outros e tudo é muito diferente daquela que foi a melhor década das nossas vidas, 2003-2012. A conjuntura política internacional é outra, a economia mundial é outra, a situação ambiental é outra, a situação sanitária é outra, as lideranças políticas internacionais são outras, o próprio Lula está mais velho vinte anos e seu partido é uma força política decadente.

De fato, a maioria que agora o reelegerá, se isso acontecer, o fará menos por esperança e mais por desespero, possivelmente com uma maioria mais estreita – nas eleições que venceu, Lula obteve em torno de 48% no primeiro turno e 60% no segundo.