sábado, 12 de abril de 2025

A capital e o capital: o homem, Brasília, Tom, Vinicius, JK, história

Dentro de nove dias, Brasília completa 65 anos. Pela lei brasileira, pode se aposentar. 21 de abril de 1960, data da inauguração, celebrada numa sinfonia por Tom e Vinicius. 

Foi quando tudo começou. Em clima de ufanismo, pelas mãos, ou melhor, pela cabeça e pela vontade determinada do mais querido presidente do Brasil, uma unanimidade nacional, cuja vida trágica exemplar é um retrato da trajetória dos brasileiros nos últimos cem anos. Presidente do melhor quinquênio da nossa história, ajudou a eleger no Congresso o primeiro presidente ditador militar, como líder do seu partido, o de maior bancada na época, confiando na promessa de eleições diretas no ano seguinte, quando voltaria pelo voto popular, para completar sua obra gloriosa, mas foi traído e cassado, passou o resto da vida no ostracismo e morreu num atentado tramado pelos terroristas de direita, versão que não se pode mais rejeitar. 

(Leio na Wikipédia que Brasília tem um lema: "Aos ventos que hão de vir". Nada mais adequado; os ventos vieram, soprando forte da Floresta Amazônica, varrendo o Planalto Central, o Sertão e chegando ao litoral, de onde partiu o homem, não qualquer homem, o Homo sapiens capitalista, que atravessou o Atlântico vindo da Europa e começou a devastar o continente. Outro homem, habitando a floresta e convivendo sabiamente com a Natureza, já vivia aqui. Foi e continua a ser dizimado, extinto como as outras espécies que o Hs não reconhece como tendo direito à vida e parte do planeta que ele considera seu, propriedade e mercadoria, simples fonte da matéria-prima para produção de riquezas. O Homo contemporâneo nunca foi sapiens, mas talvez possa ser adequadamente chamado de Homo trumpis, sua mais perfeita tradução.) 

Brasília: Sinfonia da Alvorada, o poema sinfônico de Tom e Vinicius, acabou se tornando um projeto não concretizado, mas cumpre o papel da arte de retratar ideologicamente um povo, uma época, um lugar. Idealizada pelo arquiteto Oscar Niemeyer, cujos prédios monumentais estão lá testemunhando aquela época grandiosa, embora tenhamos nos acostumado de tal forma que nem damos mais valor e até pichamos esculturas, numa demonstração de que não reconhecemos a cidade como nossa (de fato, tornou-se a cidade das castas privilegiadas do país), a sinfonia deveria ser apresentada pela primeira vez nas solenidades de inauguração da nova capital, mas isso não aconteceu. Só veio a ser executada de fato depois que a ditadura militar acabou. 

Parodiando JK, Brasília tornou-se a tragédia síntese do Brasil. Abriu o caminho para a devastação do Cerrado, do Pantanal e da Amazônia. Com o melhor dos propósitos, como atesta o poema sinfônico do Vinicius e do Tom. A música expressa a grandiosidade da Natureza que o Homem encarava -- e sempre é bom lembrar que uma árvore gigantesca matou, ao tombar, o engenheiro que liderava a construção da rodovia Balém-Brasília, outro símbolo inaugural da devastação que então de chamava de desbravamento. A questão é simples: o capitalismo "desbrava", para gerar lucro, para produzir riquezas e o rastro desse desbravamento, o outro lado da moeda, é a destruição, no caso, dos biomas milenares e suas populações, para os quais o capital não dá a menor bola. O capital não tem subjetividade, só objetividades. Enquanto o Homem for seu escravo, fazendo o que "o mercado" manda, será assim, riqueza criada com destruição e que só vai terminar no dia que as mudanças climáticas eliminarem as condições da existência humana (e de inúmeras outras espécies extintas antes) na Terra. Simples assim. 

No glorioso quinquênio JK, quando o Brasil cresceu 50 anos em 5, tudo aquilo parecia maravilhoso. O desafio era o Homem conseguir "vencer a floresta" inexpugnável durante mais de quatro séculos. O Brasil ainda era uma nação imensa cuja população estava concentrada no litoral do Leste, deixando a Natureza em paz no restante do seu território. JK, um mineiro, diamantinense, conhecia a devastação que o "desenvolvimento" provoca enquanto cria riquezas, porque foi isso que ele fez nestas montanhas, em Diamantina, Ouro Preto e todas as "cidades históricas", e faz ainda, com os rompimentos de barragens. Com seu plano, JK invadiu o Sertão e começou a marcha para Oeste. Deu aquele salto na industrialização no país e tudo mais. Enquanto ele construía Brasília, os artistas criavam como nunca antes nem depois a Bossa Nova e o Cinema Novo, além do futebol arte, que conquistou enfim a primeira Copa do Mundo. Confirmava-se, naquele pós-guerra de recuperação mundial, que o Brasil era "o país do futuro" previsto pelo escritor austríaco exilado Stefan Zweig. 

Depois da bonança do glorioso quinquênio JK, sobreveio porém uma sucessão de desgraças: a eleição de Jânio, sua renúncia, a tentativa de golpe contra a posse de Jango, o desastroso governo Jango, o golpe vitorioso do dia da mentira, uma ditadura militar de 21 anos. 

Note-se: a história não se explica pela economia, simplesmente e principalmente. O plano de JK foi só a iniciativa mais eficiente de um projeto nacionalista elaborado a partir da Revolução de 1930, que previa modernização, industrialização, urbanização, atração de capitais estrangeiros, uso de capital estatal para apoiar a iniciativa privada com obras de infraestrutura (o que foi Brasília, senão uma imensa e complexa obra de infraestrutura?). Um projeto em que o capital até então agrário e concentrado no litoral se expandiria para as cidades e para o interior, rumo à Amazônia, para transformá-la e tudo no seu caminho num gigantesco pasto e terreiro de monoculturas. Getúlio começou a fazer isso, Dutra continuou e JK deu-lhe um impulso monumental, mas a ditadura não o interrompeu, ao contrário, prosseguiu o "desenvolvimentismo" nacionalista. Nunca se criaram tantas estatais, as "brás", quanto na ditadura militar. Esse projeto só acabou com a democratização, a partir de 1985, e foi substituído pela "modernização" do neoliberalismo inaugurada por Collor, que -- ironia -- evocou JK, e seguida por Itamar, FHC, Lula e Dilma. Os que vieram depois do golpe parlamentar de 2016 só fizeram administrar o desmoronamento da economia nacional iniciado décadas antes. A bem da verdade, é preciso dizer que, embora pelo método confuso, sem um plano como JK, Getúlio ou os governos militares, Lula tentou ressuscitar o desenvolvimentismo, como o seu Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). 

A tragédia brasileira é que não continuamos de forma persistente o único projeto de desenvolvimento nacional que tivemos, como fizeram as nações que cresceram nos séculos XX e XXI, como China e outras nações asiáticas, e ao mesmo tempo procedemos a todas as ações nefastas contra a Natureza que o desenvolvimento capitalista realiza. Somos a nação que mais destrói a Natureza irresponsavelmente em troco de nada, só para benefício de uma casta capitalista riquíssima, egocêntrica, reacionária, estúpida e antidemocrática, sem qualquer benefício para 99,99% dos brasileiros, exceto as demais castas privilegiadas que sustentam essa ordem. Onde? Em Brasília, naquela cidade modernista, que foi o maior testemunho do gênio brasileiro durante cinco anos. 

JK foi modesto: seus cinco anos já representam mais de cinquenta e pelo visto se tornarão cem, pois não há no belo horizonte planaltino sinal de que os ventos substituirão a destruição em curso por um ambiente melhor. A única voz lúcida entre os políticos brasileiros (reza a lenda que, no segundo mandato que não houve, 1965-1970, JK corrigiria os erros que já antevia no seu plano de desenvolvimento), Ciro Gomes, propõe um desenvolvimentismo reciclado, que tem méritos evidentes diante do caos vigente, por tentar reorganizar a nação, mas ignora que aquele tempo passou, exatamente pelos seus efeitos desastrosos para o ambiente, e que um plano atual, para o Brasil e para o mundo, precisa partir do decrescimento econômico, da distribuição das riquezas e da recuperação da Natureza, para que a espécie humana sobreviva, numa vida em harmonia com as demais especiais, como nos ensinam há séculos os habitantes primitivos destas terras e que nunca se consideraram seus proprietários.