quarta-feira, 16 de abril de 2025

Capitalismo sem-vergonha

Há muito tempo não via um programa com tantas verdades sobre o mundo contemporâneo e de uma forma amarrada, ligando áreas distintas, como a vida privada, a política, a economia, a arte, enfim, a ideologia da nossa época, como esse Calma urgente! Sem-vergonhismo. Aplausos prolongados para Gregório Duvivier, Alessandra Orofino e Bruno Torturra. Eles discutem sobre esses estranhos tempos em que os mais ricos e poderosos não têm vergonha de roubar, manipular e enganar, inclusive seus "seguidores", isto é, seus fãs, seus eleitores, seus consumidores. O que escrevo aqui não é exatamente o que diz o trio do programa, mas o que penso a partir do que eles dizem, inclusive comentários críticos.

O ponto fundamental é que o capitalismo não mudou, continua o mesmo na sua essência, o que mudou, o que muda sempre é só a ideologia. A ideologia pela qual o capital se expressa nas mentes de alguns, os ideólogos do capital, e escraviza a todos nós, humanos, como seus servidores, capitalistas e trabalhadores. 

A nova direita, também chamada de extrema direita e de fascista, adotou o método que está sendo um sucesso, comercial e eleitoral, o que dá no mesmo. A esquerda brasileira, no poder, misturou o sucesso político e eleitoral com a corrupção; a corrupção fazia parte do sucesso político, do poder, o preço a pagar para, e deixou de ser uma alternativa ao sistema capitalista sem-vergonha. Isso continua e está mais desavergonhado nesse terceiro governo Lula. 

No fim, tudo é capitalismo, de direita ou de esquerda. Não penso que a extrema direita seja pior do que a esquerda capitalista ou o centro capitalista, está aí o "Centrão" para provar, na política brasileira. São diferentes e a sem-vergonhice assusta alguns, os crimes assumidos nos aterrorizam, sejam as mais 700 mil mortes por covid-19, sejam os extermínios de indígenas e de palestinos, seja a matança diária de jovens pretos, seja a devastação de ambientes inteiros por rompimentos de barragens de minérios, seja a derrubada de vastas extensões de floresta etc. 

Aliás, a política brasileira atual é um contraponto interessante à política americana atual e à política brasileira do governo anterior. Na prática, qual a diferença entre elas? São variações do mesmo, sendo as duas últimas versões desavergonhadas, enquanto o governo Lula 3 equilibrando-se entre o Congresso desavergonhado e o STF moralizador, finge oferecer uma alternativa a isso, mas, na prática, oferece? O que o ex-ministro Sílvio Almeida teria a dizer sobre isso? 

A chamada nova extrema direita fascista é só o que o Homo sapiens, o Homo capitalista, a velha direita, o centro, a dita esquerda são mas têm vergonha de ser. Chegamos a esse ponto do capitalismo em que as catástrofes ambientais, também conhecidas por mudanças climáticas, não podem ser negadas, mas não são enfrentadas, porque enfrentá-las é mudar o sistema e isso ninguém tem coragem de fazer, nem esquerda nem centro nem direita. A diferença é que a extrema direita não tem vergonha de afirmar que está destruindo mesmo e que destruir é bom e vai continuar destruindo e quer destruir cada vez mais e que todo mundo deve destruir. O governo Lula, por exemplo, que ainda tem alguma vergonha, mantém a destruição, mas diz não tem força política para contê-la. A pergunta inevitável é: para um governo de esquerda, se vai praticar a mesma política da extrema direita?

A extrema direita é a expressão da barbárie em que vivemos e para a qual todos contribuímos, seja como capitalistas seja como trabalhadores, seja como proprietários das riquezas, seja como produtores assalariados das riquezas, porque somos todos consumidores: os capitalistas, consumidores das riquezas que nós produzimos e nós, todos os outros, consumidores das sobras e da ideologia que nos convence a consumi-las. O capitalismo continua porque queremos que continue, apesar dos discursos em contrário.

A esquerda no poder não é de fato esquerda. Finge ser. A esquerda no poder torna-se uma variante do poder burguês, um outro time de administradores dos negócios do capital, para repetir a expressão do Marx no Manifesto Comunista. A esquerda no poder não é esquerda, se a gente considera o que caracteriza a esquerda, ou seja, a intenção de superar o capitalismo e substituí-lo por outro sistema. Nos tempos atuais, tudo isso ficou esquecido, o capitalismo perdeu totalmente a vergonha de ser o que é, de mostrar o que é, de afirmar que é o que é, e a nova direita é a expressão política disso e tem muito sucesso, porque está no seu próprio ambiente, no qual a referida esquerda tenta entrar. A formulação da alternativa a tudo isso, seus porta-vozes e modelos existem, mas não aparecem tanto quanto o modelo hegemônico, sustentado, afinal, pelo capital, o senhor do mundo. 

Me impressiona como pessoas brilhantes, cultas, inteligentes vejam tudo, conheçam tudo e cheguem só à conclusão de que tudo isso é "extremamente problemático". É um começo. O que fazer com isso, ou seja, o que queremos no lugar disso e como fazer para chegar ao que queremos não está mais no horizonte da esquerda. Não falo de utopia, falo de propostas concretas que a esquerda não ousa ter. 

Qual é a alternativa ao capitalismo? Alternativa prática, com propostas concretas para "o público". Penso que essa alternativa não existe porque o marxismo, ou marx-leninismo e outras variantes esgotaram as perspectivas da esquerda, com a experiência russa e o desmoronamento do bloco soviético. Não existe um marxismo do século XXI -- e o stalinismo foi o marxismo do século XX. Todos os intelectuais que têm coragem hoje de se dizerem marxistas não dão um passo para atualizar o marxismo, tudo que fazem é louvar Marx, dizer como ele é genial, tentar aplicar o que ele disse há duzentos anos ao mundo contemporâneo que é completamente diferente. 

Nenhuma das previsões do profeta Marx se realizou, embora seu retrato do capitalismo tenha sido o melhor e definitivo. O Capital, hoje, é só um livro base, um ponto de partida para a formulação de uma alternativa de esquerda ao capitalismo, seja qual for o seu nome, comunismo, socialismo, social-democracia, democracia dos trabalhadores, anarquia. A China comunista desenvolveu seu modelo capitalista de Estado, que não é comunista, apenas não é esse capitalismo sem-vergonha, mas provavelmente tem suas características, mas a gente pouco sabe dele, porque a esquerda não tem coragem de discuti-lo, talvez para não expor a fragilidade do seu marxismo. Me parece incrível que a esquerda que se diz marxista ignore uma nação que cresce de forma espetacular e está prestes a se tornar a maior potência capitalista mundial e se diz comunista.

É impossível não comentar, porque, ao fazer certas afirmações ("extremamente problemático", "a publicidade tem pessoas brilhantes"), os analistas não veem o óbvio. É claro que a publicidade suga mentes brilhantes, porque senão ela não faria comerciais eficientes. A publicidade, como expressão institucional do capital, faz o que tem de fazer: compra trabalhadores. E os indivíduos mostram o que são. O capital, uma coisa imaterial, que não existe de verdade ("é só dinheiro"), só pode exercer seu poder dominando os humanos; se os humanos disserem não a ele, se forem capazes de adotar uma ideologia anticapitalista, não capitalista, o capital desaparece como num passe de mágica. São os humanos, com suas ideologias, capazes até de transformar Jesus Cristo crucificado pelos poderosos dois mil anos atrás num avalista da prosperidade, que encarnam o capital e lhe possibilitam exercer seu poder. 

Não vou dizer que publicitários são geniais nem criadores de verdadeiras obras de arte, embora pudesse dizer que são, porque de fato não são, mas parecem ser, e quase são, chegam a exercer a mesma função no público, mas não são simplesmente pelo fato de que mentem sempre para vender, enquanto a arte é o oposto disso, nos mostra a verdade. A publicidade captura a arte para fingir, enganar e vender. O indivíduo "brilhante" ou "genial" que troca a arte pela publicidade prefere ser um publicitário rico do que um artista pobre, justifica-se dizendo "eu tenho que sobreviver, entende?", para citar o melhor Pasquim, dos anos 70, pra gente ver como isso não é novo e já na ditadura tinha gente se vendendo. De fato, esse "modelo de negócio" baseado na publicidade é parte do capitalismo americano do pós-guerra, do consumismo, que é explicado de forma brilhante e genial no vídeo A história das coisas. Quem na minha geração não se lembra do seriado A feiticeira, cujo marido é um publicitário, seriado que, por sua vez, é exemplo do modelo televisão, negócio fingindo ser arte para vender sabão em pó?

"A nossa enorme economia produtiva exige que façamos do consumo nossa forma de vida, que transformemos a compra e uso de bens em rituais, que procuremos a nossa satisfação espiritual, a satisfação do nosso ego, no consumo. Precisamos que as coisas sejam consumidas, destruídas, substituídas e descartadas a um ritmo cada vez maior." (Victor Lebow, teórico do consumismo que passou a vigorar nos EUA e no mundo a partir do fim da 2ª Guerra Mundial, citado em A história das coisas.) 

Uma coisa puxa outra e vai dar no que o mundo é hoje. No século XX, o capitalismo entrou em colapso, com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Revolução Russa de 1917, a ascensão do fasci-nazismo (1911-1945), a Grande Depressão de 1929 e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Hoje, as pessoas razoáveis ficam estarrecidas com o genocídio na Palestina e chocadas com o projeto do presidente americano de transformar a região, depois de exterminado o último palestino, num resort fantástico, e é possível que consiga, já que as resistências parecem fracas, mas não há nada de extraordinário nisso, a não ser a nossa -- das pessoas razoáveis, boas, de esquerda -- aparente infinita incapacidade de compreender a realidade, a história e o comportamento humano. Os acontecimentos do século XX citados acima produziram horrores que, se houvesse uma força superior para julgá-los, teriam condenado ao extermínio da espécie humana da face da Terra. A Segunda Guerra Mundial terminou com os EUA, "a pátria da liberdade", despejando duas bombas atômicas sobre a população civil japonesa. Foi talvez o maior crime da ideologia capitalista no século, mas não o primeiro nem o último -- não vou falar dos outros acontecimentos nem dos que vieram depois e continuam ainda hoje.

O projeto do presidente americano é a história do capitalismo, exterminar um povo para explorar a sua terra. Por que não me soa estranho? Por que não me parece novidade? O que foi que os europeus fizeram neste continente desde sua chegada no fim do século XV? O que é que o agrotoxiconegócio faz na Amazônia ainda hoje, senão exterminar os povos originários para explorá-la comercialmente e enriquecer, derrubando a floresta e transformando-a em pasto e solo de plantio de monoculturas? O que foi que os próprios colonizadores europeus fizeram naquelas terras para fundar os EUA, a nação sem nome, senão exterminar os povos indígenas?

Isso é o capitalismo na sua essência, passando por todas as suas variantes, envergonhadas ou desavergonhadas. O único objetivo é o lucro, é a produção de riqueza para obtenção de lucro. O capital é como um câncer, que só existe crescendo sempre e destruindo. Faz isso encarnado nos humanos que o criaram e por meio de nós consome a Natureza. Qual é a alternativa a ele? Apresentá-la, conquistar as mentes e implantá-la é o papel da esquerda para tentar ainda salvar a espécie, a civilização, a vida na Terra. 

Conclusão que eu tiro do brilhante programa, um dos melhores dos que já vi: a esquerda é igual a Marx, excelente em fazer diagnósticos, mas não tem uma proposta alternativa melhor (considerando que nem a URSS nem a China comunista, esta até prova em contrário, se mostraram melhores) ao capitalismo.