PS: Em um ano de governo do capitão, o autoritarismo militar não é a pior das suas características, as piores são a imposição do fundamentalismo evangélico e principalmente a política neoliberal de destruição do Estado, que está tornando o Brasil uma "ex-nação", na expressão do Ciro Gomes, de longe o político mais lúcido que o país tem. Outro aspecto da análise é que o poder da comunicação concentrada em poucas mãos mudou de figura, com um governo que usa a internet, as redes sociais, um exército de robôs e notícias falsas para se comunicar, ao mesmo tempo que ataca a imprensa de todas formas possíveis, tanto jornalistas quanto empresas, que não gostam dele e o criticam, mas apoiam sem pudor sua agenda econômica neoliberal. O que se segue foi escrito há um ano.
O golpe de 2016 e a volta dos militares torna-se ainda pior porque
nos pegou desprevenidos, iludidos com a democracia que durou 31 anos
(1985-2016) e com os impressionantes resultados sociais e econômicos
da Era Lula (2003-2010). O que vem por aí – um governo militar
autoritário eleito pelo voto popular – pode ser pior, em alguns
aspectos, do que a ditadura de 1964-1985.
Quase tudo, porém, foi previsto e ignorado, porque nos iludíamos.
O próprio provável presidente, um capitão da reserva, que tem um
general da reserva como vice, uma legião de militares o apoiando e
vários generais cotados para ministros [e as milícias, o crime
organizado, multinacionais do petróleo, da indústria armamentista
etc., o governo americano], é um exemplo. A democracia não fez o
ajuste de contas com a ditadura, deixou o inimigo sobreviver
enfraquecido, fingindo que não oferecia mais perigo, e agora, no
meio de uma crise econômica e política que golpeou a democracia,
ele ressurge, revigorado com o sangue do povo desesperado.
Não era de se esperar que o governo Sarney ajustasse contas com a
ditadura, muito menos o governo Collor; esperava-se que os governos
tucanos o fizessem, mas nem mesmo os governos do PT, mais à
esquerda, foram capazes disso – de punir os torturadores, jogar o
autoritarismo na lata de lixo da História e reformar as Forças
Armadas e as polícias militares para que se tornassem de uma vez por
toda defensoras da democracia. Agora, são os militares que, sem
qualquer pudor, fazem a revisão da História, transformam os
democratas em diabos e promovem o elogio da ditadura.
Não houve sequer o embate dos políticos com os militares, dos
democratas com os autoritários. A volta dos militares ao poder de
certa forma afirma, mais de quatro décadas depois, o êxito da
abertura lenta, gradual e segura promovida por Golberi e Geisel. Foi
como se eles tivessem dito: vamos entregar o poder e nos preservar,
para que no futuro novas gerações de militares voltem. Tímidos,
medrosos, conciliadores, os civis democratas não compreenderam o
perigo que aquilo representava, não tiveram coragem para enfrentar
os militares, fingiram que nada tinha acontecido, que a ditadura era
um presente do céu, que a democracia ia durar para sempre, que o
povo não precisaria defendê-la, que não precisava conhecer os
fatos que ignorou durante as décadas de governos autoritários, de
repressão e censura. Faltou educar o povo sobre sua História, as
verdades e mazelas da ditadura, o valor da democracia e a necessidade
de defendê-la.
Os militares não voltariam agora ao proscênio sem a ajuda da
mídia golpista. Democratizar a comunicação – que nada mais é do
que pôr em prática a Constituição de 1988, coisa que os governos
do PSDB e do PT não fizeram – é condição fundamental para a
democracia.
Foi com participação decisiva da globoetc. que o PSDB e o PMDB
deram o golpe; os dois partidos assumiram o governo golpista, mas
quem herdou os votos das multidões que foram às ruas incentivadas
pela globoetc. foi a extrema direita militar – que, agora sabemos,
não é a corporação, é uma parte dela, envolvida com o crime
organizado, assim como as polícias militares, organizadas pela
ditadura, que foram mantidas intactas pela Nova República, assumiram
o papel de repressão dos movimentos populares, de extermínio de
pobres, favelados, negros e jovens, ligaram-se ao tráfico e formaram
as milícias.
Uma reforma das polícias é fundamental para organizar um Estado
democrático no Brasil. Assim como é fundamental democratizar a
comunicação. Não existe em nenhuma nação democrática uma
imprensa concentrada como existe no Brasil, capaz de decidir o que o
povo vai saber e o que não vai fazer, de eleger e depor presidentes,
como um poder acima dos outros; nem mesmo e muito menos nos EUA há
uma Globo – lá, a imprensa está cumprindo o papel de desmascarar
o governo fake do tri-bi-milionário Donald Trump.
Ainda mais importante do que democratizar a mídia e as forças
policiais é democratizar a educação. Não existe nada mais
importante para uma nação do que a educação do seu povo. Os
governos do ciclo democrático que terminou em 2016 não precisariam
fazer mais nada se implantassem em todo o país as escolas da
democracia: um sistema de educação pública universal de qualidade
em tempo integral. Começando pela educação infantil e sendo
implantada gradualmente até a universidade e a pós-graduação, uma
educação assim teria feito uma revolução democrática sólida e
duradoura no Brasil, como fez nos países capitalistas mais
avançados.
Se começasse em 1995, no primeiro governo FHC, e continuasse nos
governos seguintes, de Lula e Dilma, como um programa de Estado, não
um programa partidário, as crianças que entraram na escola naquele
ano já estariam hoje no doutorado. Milhões de jovens estariam na
universidade, outros milhões no ensino médio, outros mais no ensino
fundamental.
O Brasil tem excelentes educadores e projetos educacionais, não é
esse o problema. O problema é o presidente e o partido vencedores na
eleição considerarem a educação do seu povo como uma escolha
perigosa, porque um povo educado é um povo difícil de ser enganado
e manipulado. Com exceção de Leonel Brizola e Darci Ribeiro, nenhum
político brasileiro teve essa coragem até hoje, e governos
posteriores, no Rio de Janeiro, trataram de destruir seu legado. O PT
preferiu expandir a educação distribuindo dinheiro público para a
iniciativa privada, fazendo o processo inverso, do fim para começo,
contemplando a universidade e o ensino técnico, modelo que
enriqueceu, por exemplo, o casal de políticos Muniz, célebre por
sua corrupção.
Para democratizar a educação é preciso, primeiro, tornar a
educação prioridade e destinar muito dinheiro no orçamento para
ela. Atualmente, o dinheiro público é destinado, quase todo, para
pagar banqueiros e o restante para o pagamento dos privilégios das
castas de juízes, militares, políticos e funcionários públicos
graduados. Não sobra dinheiro para o povo: educação, saúde,
transporte, ambiente, lazer, qualidade de vida nas cidades etc. não
cabem no orçamento.
A educação pública de qualidade é cara, mas não é despesa, é
investimento, o mais valioso, pois trará resultados incalculáveis
para a nação. Escolas em tempo integral, escolas com espaços e
instalações de primeira, com os melhores professores, bem
remunerados, com pedagogia moderna, com equipamentos de ponta, com
equipamentos esportivos e prática de esportes, com ateliês de arte,
com oficinas de ofícios, com refeições e alimentos de qualidade,
naturais, orgânicos, com nutricionista, médica, dentista,
psicóloga. Enfim, uma escola de qualidade na qual crianças e jovens
passem o dia, enquanto seus pais trabalham, convivendo e praticando a
democracia, ricos, medianos e pobres, protagonistas da sua formação,
com auxílio dos melhores profissionais e a participação dos pais
na vida escolar.
Quem pode ser contra uma educação assim? É claro que ela não
interessa a uma minoria que já tem educação de qualidade para seus
filhos, que paga caro por ela, e que reage a toda mudança, porque
quer manter a desigualdade e a injustiça. Mesmo ela, porém, em
gerações futuras, se beneficiará dos ganhos que a educação e a
democracia trazem, tais como a diminuição da violência que apavora
os privilegiados. Por melhor que seja uma boa escola particular, ela
não oferece a riqueza da convivência democrática entre diferentes,
porque nela todos são ricos.
O atual candidato do PT, um professor, ex-ministro da Educação,
poderia ter apresentado essa proposta, só essa, como carro-chefe e
síntese do seu programa – como a construção de Brasília foi a
síntese do programa vitorioso de JK. Isso jogaria muita luz sobre a
proposta, lhe daria personalidade, distinguindo-o do Lula, ampliaria
o debate sobre o que realmente importa e no mínimo plantaria uma
semente para a próxima campanha eleitoral.
Enquanto essa semente não for plantada, o Brasil não tem futuro
democrático. Teremos apenas bons períodos de ilusão, como os anos
JK, o Plano Real e a Era Lula, alternados com governos autoritários,
obscurantistas, reacionários, antipovo.