sábado, 6 de janeiro de 2024

Dia de Reis


Capítulo do livro 17, do autor, publicado em 2020. 

-Vale seis, ladrão de milho!
Tio Quito deu um pulo jogando a cadeira para trás e começou a gesticular em direção ao tio Lindolfo.
-Seis só! – repetia.
Em volta deles, a meninada tentava entender aquele teatro que se repetia uma vez por ano. Na mesa estavam os quatro jogadores: papai, tio Tom, tio Quito e tio Lindolfo.
Tio Lindolfo dera as cartas.
-Eu sou pé – disse.
E fez a primeira mão matando um três jogado pelo papai com um sete de ouros. Na segunda, tio Quito foi obrigado a gastar o zap, a carta mais alta do jogo, para matar outro três. Agora, na mão decisiva, papai jogava mais um três e tio Tom não deixava passar.
-Truco esse três – disse.
Tio Quito fez cara de surpresa. Coçou o queixo, olhou para papai.
-Jogamos errado – comentou.
-Truco! – entusiasmou-se tio Tom.
-Quanto eles têm? – quis saber tio Quito.
Papai contou:
-Com o truco eles fecham a partida.
Tio Quito fez que ia pôr sua carta no baralho, mas voltou a mão.
-Vamos ver? – sugeriu.
-Ainda tem um três rodando – observou papai.
-Vocês vão ou não vão? – perguntou tio Tom, impaciente.
-Cai – ordenou tio Quito.
Tio Tom sorriu e jogou na mesa sua carta, certo da vitória. Era mais que um três, era a espadilha. Tio Quito coçou o queixo outra vez, o olhar desolado. Tio Tom fez menção de puxar os grãos de milho. Foi quando tio Quito deu o pulo da cadeira e gritou, assustando todo mundo.
-Vale seis, ladrão de milho! Vale seis!
Tio Quito era o rei do truco. Podia não ser o melhor jogador, mas era a principal atração do Dia de Reis, quando se comemorava lá em casa o aniversário de casamento dos meus pais. Aprontava tal estardalhaço que a gente nunca sabia se ele tinha ganhado ou perdido: ria, gritava, gesticulava, fazia sinais, piscava, levantava, sentava, e até subia na cadeira.
Tio Quito era o rei do truco e a alegria da meninada. Sempre chegava com balas ou outra guloseima nos bolsos, repetindo vovô, que no trajeto da sua casa à nossa ia deixando balas debaixo da porta de toda casa onde havia criança. Irmão mais velho de papai, tio Quito fazia contraste com ele. Papai era severo, contido, certinho; tio Quito era brincalhão, carinhoso e desbocado; papai era forte, saudável, jogava futebol, tio Quito era miúdo, cego de uma vista e mancava; papai estava sempre sóbrio, tio Quito adorava uma cachacinha. Papai, o mais bem-sucedido dos irmãos, lamentava frustrações pessoais – uma delas envolvendo o próprio tio Quito: cedendo a pressões familiares, papai vendeu barato o lote do Caiçara ao irmão, que não construiu e se desfez do imóvel. Tio Quito, simples balconista, funcionário na loja do sogro, sem casa própria, gozava a vida com humor e alegria. Tinha sempre uma história pra contar.
-Escuta esta aqui – dizia, chamando um dos sobrinhos para sentar do seu lado.
Ajeitava-se na cadeira e fazia um prólogo, em voz baixa, cerimonioso, acompanhado de gestos e olhares ao redor, o cenho franzido. Depois começava uma longa narrativa, que nos enchia de medo, com suas almas penadas e acontecimentos inexplicáveis, ocorridos há muito tempo, em Santa Luzia, terra da família, e no sertão adentro, junto a rios e matas onde vovô levava os filhos para pescar e caçar. Mais tarde, quando os meninos éramos nós, foi na orla erma e rústica da Lagoa da Pampulha que eles nos levaram para pegar piabas, acarás e traíras.
Papai ouvia tio Quito em silêncio, reverente, com um sorriso nos lábios.
-Não é deveras? – perguntava-lhe tio Quito, buscando cumplicidade.
E papai balançava a cabeça confirmando.
Tio Lindolfo, o decano do grupo, era um tipo peculiar. Solteirão, tesoureiro aposentado do Banco do Brasil, era mais que sério, era soturno. Baixinho, vestido sempre de forma impecável, era o único homem que eu conhecia que usava suspensórios e, às vezes, polainas. Seu cabelo estava sempre bem cortado e seu bigode, aparado. Não falava com crianças, no máximo sorria, um sorriso amarelo, quase contrariado.
Tio Tom, o irmão caçula do papai, tinha sido craque no futebol de várzea.
-Só não foi melhor do que seu pai – dizia tio Quito. – Eu era perna-de-pau – completava.
-Quito era um zagueiro muito bom, batia muito, mas era bom – corrigia papai.
-Seu pai era um craque – tornava tio Quito.
Papai ouvia os elogios, orgulhoso. Aquilo não era lorota do tio Quito. Qualquer amigo do papai que eu conhecia ia logo dizendo:
-Seu pai foi o maior craque que a Lagoinha já conheceu.
Ou:
-Seu pai foi o melhor jogador que eu vi jogar.
Ou ainda:
-Se seu pai jogasse hoje, seria titular em qualquer time do Brasil.
O sucesso no futebol amador era o grande orgulho do papai, que guardava fotografias dos times em que jogou e recortes de jornais com notícias de partidas nas quais brilhou. Aos cinquenta anos, ele continuava jogando no time dos funcionários do banco, todos os sábados. Não corria mais, mas dominava a bola com categoria e a protegia como ninguém. Não errava passes e fazia lançamentos com precisão milimétrica. Das suas cobranças de falta e escanteio saíam muitos gols. Se tio Quito era o rei do truco, papai era o rei do futebol.
Tio Lindolfo e tio Tom trocaram olhares de dúvida e espanto. Só uma carta matava a espadilha, o sete de copas, já que tio Quito jogara o zap na segunda mão. Teria ele saído com o casal? Ou estaria blefando? Ninguém conseguia prever seu jogo.
-Lugar de medroso é no baralho! – gritou tio Quito.
Papai só olhava, fingindo não saber de nada, embora os parceiros costumassem combinar sinais.
-Vamos ver, Lindolfo? – disse tio Tom, com seu jeito inseguro.
Tio Lindolfo, metódico, fazia contas:
-Com seis eles ganham a queda – ponderou.
-Com truco vão pra mão de mando – observou tio Tom.
-Vocês vão correr com uma espadilha? – provocou tio Quito, gritando cada vez mais alto.
-Ele saiu de casal – disse tio Lindolfo. – Não vamos, não.
E a dupla correu. Tio Quito deu uma gargalhada debochada.
-O que você tinha? – perguntou tio Tom.
-Pra ver tem de pagar – respondeu tio Quito, arrastando a carta em direção a papai.
Papai pegou-a com cuidado, virou-a levemente para que ninguém visse e sorriu.
-Fizeram bem em correr – comentou, escondendo a carta no baralho.
-Eu sabia – disse tio Lindolfo.
O fato é que na mão de mando, sem poder trucar, tio Quito e papai ganharam com cartas pequenas – ganharam a última mão e o jogo. Tio Quito era mesmo o rei do truco. 

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