Imagina se a eleição em papel e urna não fosse nos Estados Unidos, como a imprensa brasileira a trataria. Como isso acontece lá, a imprensa colonizada sempre tratou o assunto com respeito, explicando para seu público que esse é um costume deles, como, por exemplo, o dia de ação de graças, que para nós também soa estranho. Nossa reverência a tudo que é americano, que a imprensa expressa e incentiva, é impressionante. A mesma reverência temos pela tecnologia. A urna eletrônica é um "avanço tecnológico" e basta isso para aprová-la. O fato de não ser possível a recontagem de votos é um argumento desprezado. O fato de os partidos não têm acesso aos programas também. Brizola questiona a informatização do voto e a totalização. Por que não entregar para os estados a totalização? Afinal, o Brasil é uma federação. O papel do TSE poderia se limitar à soma e divulgação. É assim que acontece nos EUA e a nação mais desenvolvida do mundo não se considerada atrasada por não adotar o voto eletrônico. A eleição foi dominada por uma tecnocracia, argumenta Brizola.
Brizola tinha autoridade moral, como ele mesmo lembra, para questionar a entrada da informática na eleição. Em 1982, ainda sob a ditadura militar, ele foi eleito governador do Rio de Janeiro graças à descoberta, por acaso, de um programa de totalização de votos que transferia seus votos para o candidato preferido dos militares e da Globo. O JB, concorrente do Globo, comprou a briga e ajudou o PDT a desmascarar a farsa. Como lembra Brizola nessa entrevista ao Roda Viva, foi um órgão do sistema de informações da ditadura quem montou a fraude, que nunca foi apurada nem punida, assim como o órgão continuou funcionado, incorporado pela Abin, que existe ainda hoje e participou ativamente da tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023.
Rever programas assim é uma aula de história, mas não só: é uma oportunidade de fazer uma autocrítica de quem fomos, como pensamos e nos comportamos nesses quarenta anos de redemocratização do país.
Ridicularizado como um político antiquado pelos entrevistadores, que não tinham nenhum constrangimento em rir dele, Brizola demonstra uma lucidez impressionante. Suas críticas, suas ponderações e suas bandeiras eram pertinentes. Com sua experiência política e inteligência admirável, ele via o que poucos viam, o que intelectuais, líderes políticos e jornalistas não queriam ver e, com sua influência de formadores da opinião pública, impediam que a população visse.
Eu era um, reconheço, que considerava Brizola, com sua fala arrastada, um político ultrapassado. Tinha embarcado, assim como a maioria, no espírito do nosso tempo, na ideologia dominante, na era de neoliberalismo. Abrimos mão do desenvolvimento nacional em nome da modernização. Um dos muitos exemplos que Brizola dá é a própria informática, que se desenvolvia protegida pela reserva de mercado e foi destruída pela abertura à concorrência internacional. Collor começou isso, mas foi FHC, aparentemente seu adversário, quem impulsionou e Lula, tido como esquerdista, quem continuou e continua ainda. Sem nenhum plano de desenvolvimento nacional, sem nenhum planejamento de longo prazo, sem nenhum equilíbrio, sem considerar os interesses nacionais e muito menos os interesses populares.
Na prática, a política econômica brasileira após a ditadura nada mais foi do que entregar para o capital estrangeiro todo o patrimônio nacional, transformar o Brasil numa nação exportadora de produtos primários -- à custa da catastrófica destruição ambiental -- e importadora de tudo mais, cujo desequilíbrio só faz aumentar sua dívida e entregar para banqueiros somas astronômicas de juros, todo ano, há décadas.
Brizola via tudo isso desde o começo e era considerado ultrapassado.