A filósofa feminista americana não cita, mas poderia estar falando do Brasil dos governos FHC, Lula, Dilma e Lula outra vez. A entrevista não fala do Brasil e segue outros rumos, mas me parece pertinente a comparação.
Feminismo atual é voltado a uma minoria privilegiada, diz filósofa feminista
Vinicius Pereira, de São Paulo para a BBC News Brasil, 26 junho 2023
BBC News Brasil - Para começar, queria entender melhor a sua definição do "neoliberalismo progressista" e como a senhora vê a atual crise pela qual a democracia passa em países como EUA e Brasil?
Nancy Fraser - O neoliberalismo progressista é um termo que cunhei para tentar descrever uma aliança entre uma fração da elite capitalista, centrada em Wall Street, no Vale do Silício e Hollywood, lugares simbólicos do capital hi-tech, e de parte dos liberais mainstream de movimentos feministas, antirracistas, ambientalistas e LGBTQIA+.
Em muitos países, o neoliberalismo se consolidou com esse tipo de aliança com os progressistas. Você poderia citar Ronald Reagan [ex-presidente dos EUA] e Margaret Thatcher [ex-primeira ministra do Reino Unido], tipos originais de conservadores e que introduziram o neoliberalismo nesses países, mas em outros locais, o neoliberalismo foi realmente consolidado por um tipo de política quase que de centro-esquerda.
Falamos, por exemplo, de Bill Clinton, que construiu o que chamamos de “Novos Democratas” - uma força política utilizada para marginalizar a ala esquerda do partido Democrata. Podemos citar também o novo Partido Trabalhista de Tony Blair, no Reino Unido, que são os exemplos mais célebres.
Clinton e Blair colocaram, em um mesmo movimento político, feministas, antirracistas, ambientalistas e ativistas LBGTQIA+ de um lado e uma parte muito cosmopolita e supertecnológica dos empresários do outro.
A ideia era realmente promover uma liberalização, mercantilização e financeirização da economia, mas que teve efeitos muito negativos na segurança econômica e no bem-estar social das classes trabalhadoras em todo o mundo.
As forças que desejavam esse tipo de projeto econômico precisavam de algum carisma, algum tipo de toque especial, que faria esse projeto se tornar atrativo e vinculado a algo que poderia obter amplo apoio. Isso, de certa forma, forneceria cobertura perante a sociedade, dado que essa política econômica é feita para os ricos, mas que, com isso, poderia ser vista como algo amigável pelo restante.
Portanto, tal política econômica foi fundida com uma forma de feminismo meritocrático, antirracista e ambientalista. Com isso, essa forma de política socioeconômica conseguiu a imagem de ser algo emancipatória, excitante, que olhava para frente.
Em alguns países, como na Alemanha liderada pelo ex-primeiro-ministro Gerhard Schröder, do SPD (Partido Social-Democrata alemão), essa política teve muito sucesso, mas acho que nunca houve um nome para isso. Por isso, comecei a definir esse conjunto de políticas como “neoliberalismo progressista”, pois eu queria realmente sinalizar o neoliberalismo como um projeto econômico muito inconstante e oportunista.
BBC News Brasil - O "neoliberalismo progressista" fez com que as discussões se tornassem mais identitárias, ao invés de econômicas, tanto nos EUA como no Brasil?
Fraser - Eu distinguiria a discussão entre políticas de distribuição e políticas de reconhecimento. Distribuição é exatamente sobre economia. É sobre trabalho, seguros, salários, sobre também quem paga impostos, quanto as empresas deveriam pagar ou quanto a classe média deveria pagar. Tudo isso é o que eu penso sobre as políticas de distribuição.
Do outro lado, há as políticas de reconhecimento, que tem a ver realmente como nós reconhecemos todos os membros da nossa sociedade. Pessoas que pertencem a grupos que são historicamente marginalizados, como, por exemplo, gays e lésbicas, trans, mulheres negras, imigrantes, minorias religiosas, entre outros.
Essas pessoas serão reconhecidas como membros plenos da nossa sociedade? Eles terão os mesmos direitos? Para mim, você precisa das duas discussões. Para ter uma sociedade genuinamente justa, precisamos de uma política de inclusão e reconhecimento e de políticas de distribuição igualitárias. E, caso haja um desbalanceamento, se focar em um e ignorar o outro, as coisas irão dar errado.
Eu diria que na era do New Deal e da social-democracia nos EUA, havia um grande estresse sobre políticas mais igualitárias de distribuição, sem uma atenção igual para políticas de reconhecimento. Nas décadas seguintes, em especial nas décadas de 1980, 1990 e 2000, a ênfase mudou apenas para o reconhecimento ou diversidade.
Acredito que, por muito tempo, isso sugou o oxigênio de outras discussões. O foco principal dos movimentos sociais progressistas não estava na parte da distribuição, o que foi um desastre porque foi nessas décadas que o neoliberalismo estava se desenrolando e que era o momento real em que você precisava redobrar a atenção sobre a distribuição de renda.
Ao invés de trabalharmos para que ambas políticas fossem o foco e houvesse uma conexões entre eles, nós tivemos o foco apenas no reconhecimento ou, como você diz, nas pautas identitárias.
Mas, tenho que dizer que recentemente as coisas estão mudando novamente. Eu acho que nós estamos tendo, desde a eleição de Trump nos EUA em 2016, uma mudança das massas, que começam a se virar contra o sistema.
Com essas circunstâncias, há mais atenção sobre distribuição e há versões disso na direita e na esquerda, como Trump e Sanders, nos EUA, por exemplo. Agora, a diferença entre os dois está no reconhecimento. Trump é um branco, nacionalista, anti-imigração, antigay e antitrans, enquanto que do outro lado há inclusão.
Estamos começando a retornar nessa questão de distribuição e reconhecimento e, nos EUA, neste momento, a direita está fomentando uma guerra cultural focada naquilo que podemos falar nas escolas, o que devemos ensinar sobre o racismo nas escolas, dentre outras coisas.
Isso é uma estratégia deliberada para distrair a atenção para longe das políticas econômicas porque os Republicanos, incluindo Trump e seus concorrentes, ainda têm um programa econômico pró-ricos. Eles não querem falar muito sobre isso. Isso é distração.
Então, o desafio para o outro lado é resistir a ser tragado pela guerra cultural e deixar o debate econômico de lado ou, ao menos, entender como conectar essas duas visões novamente.
A diversidade está se tornando uma palavra utilizada apenas pelas empresas. Todas as companhias, toda universidade, tem um departamento de diversidade e essas pessoas são completamente desconectadas de qualquer ideia de como um conteúdo crítico deveria ser. Isso é uma política muito rasa. Não é algo igualitário.
As vezes, aqui nos EUA, nós dizemos "black faces in high places". Então, sem qualquer atenção para a situação da massa das pessoas negras, essa diversidade não possui um conteúdo real e é uma nova distração basicamente.
BBC News Brasil - Mas isso ocorreu por causa da própria esquerda ou a extrema-direita pautou o debate?
Fraser - Eu acho que é uma ótima questão, mas muito complicada. Eu venho pensando muito nisso. De um lado, nós não devemos fazer parte dessa política de distração, não podemos deixar com que todos os debates institucionais sejam sobre esses problemas. Nós não podemos jogar o jogo deles.
Ao mesmo tempo, o que eles estão fazendo é tornar alvo e usando de bode expiatório pessoas reais. Então, nós não podemos lidar com um projeto que nega serviços sociais para uma juventude trans, por exemplo, que está em uma situação frágil e vulnerável.
Nós temos que, de alguma forma, estarmos preparados para defender indivíduos que estão sendo usados, ao mesmo tempo que defendemos os direitos de reprodução, que é um outro foco de ataque.
Por isso, deveríamos falar sobre tais pontos, mas a parte difícil é perceber como conectar esses dois problemas. Isso não é fácil.
BBC News Brasil - A senhora acha que esse "neoliberalismo progressista" ajudou na eleição de presidentes da direita radical, como Trump nos EUA e Bolsonaro, no Brasil?
Fraser - Sim, com certeza. Nos EUA não há dúvidas que o bloco do neoliberalismo progressista, que consolidou o neoliberalismo e marginalizou a parte pró-trabalhista do partido Democrata, realmente tem uma grande parte de responsabilidade na deterioração das condições e dos padrões de vida no país.
No chamado Cinturão da Ferrugem, que é historicamente o coração da indústria americana e hoje é um terreno baldio com muitos problemas de vício em opioides e violência armada, o neoliberalismo progressista tem muito o que responder. Eles, basicamente, supervisionaram a transição de uma classe trabalhadora altamente sindicalizada para uma massa de trabalho mal paga e precarizada.
Não há dúvidas que isso ajudou Trump, mas também ajudou Bernie Sanders. Em outras palavras, as pessoas entenderam, em um certo momento, que eles não poderiam seguir essas políticas neoliberais, que eles precisavam de uma alternativa para uma situação que Antonio Gramsci chama de “crise da hegemonia”.
Elas perceberam que o establishment não é mais confiável, o senso comum já não era mais persuasivo, então as pessoas estavam olhando para uma alternativa radical. Algumas olharam para Trump, outras para Sanders, e o que é muito interessante é que às vezes elas optavam por Sanders, mas com ele fora da disputa, votaram em Trump, em um fenômeno semelhante ao que ocorreu no Brasil, com o voto “Bolsolula”.
Qualquer forma de neoliberalismo se tornou tóxica, politicamente falando. As pessoas começaram a procurar alternativas para esse sistema. Em um país como os EUA, onde o neoliberalismo se aliou aos progressistas, é compreensível que Trump fosse o beneficiário maior dessa busca. Isso porque o neoliberalismo se associou muito ao tema da diversidade e, ao rejeitar esse sistema econômico, acabam por rejeitar também a pauta identitária.
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