domingo, 23 de junho de 2019

A justiça que discrimina

Outro retrato, dessa vez da espécie humana no Brasil, não a original, mas a que chegou com Cabral, em 1500, e tomou posse -- como assim? Posse do que já tinha habitantes? Posse do que foi criado por Deus ou pelo big-bang? Não consigo entender como terra pode ter dono, principalmente não entendo como todos acham natural o que é antinatural, solo, água, bichos, árvores, ar terem dono.
Mais uma vez: vale a pena ver o documentário A juíza.

A justiça que burla a Constituição joga a democracia na cova

João Filho, 23/6/2019, 8h49, The Intercept Brasil

Há três anos, o premiado jornalista investigativo Lúcio de Castro descobriu que Paulo Henrique Cardoso, filho do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, atuava no ramo do petróleo — um fato até então desconhecido pela opinião pública. PHC era sócio de uma empresa de comércio de produtos petroquímicos. Essa empresa mantinha negócios com empresas investigadas pela Lava Jato, como a Odebrecht e a Braskem, e possuía uma offshore em paraíso fiscal. Lúcio de Castro descobriu também que o filho de FHC era sócio, em outros negócios, de um argentino, braço direito do presidente Mauricio Macri, que se suicidou após se ver envolvido em escândalos de corrupção na Argentina.

À época, o jornalista mostrou que a Polícia Federal havia descoberto e-mail do Instituto FHC recebendo doação da Braskem. Os negócios nebulosos da família de FHC não eram meras suposições. Lúcio de Castro tinha tudo documentado. A reportagem foi oferecida para todos os grandes veículos da imprensa. Nenhum quis publicar. Os possíveis crimes contidos ali ainda não haviam sido prescritos.


Clique AQUI para ler a íntegra no The Intercept Brasil.

A orangotango que se transformou em 'pessoa' na Argentina

História do dia. Um retrato do que é a espécie humana. A propósito, vale a pena ver o documentário A juíza, no Belas Artes.



Sandra, a orangotango que se transformou em 'pessoa'

Sandra tem 33 anos e vive no Ecoparque de Buenos Aires. É uma orangotango mestiça a quem a Justiça argentina reconheceu seus direitos como "pessoa não humana".

Enric González, 22/6/2019.

Sandra nasceu em 14 de fevereiro de 1986 no zoológico de Rostock, na então República Democrática Alemã. Não se sabe muito sobre sua infância, exceto que sua mãe a rejeitou. Cresceu na solidão. Enviaram-na para o zoológico de Gelsenkirchen e em setembro de 1995, aos 9 anos, foi vendida para o zoológico de Buenos Aires. Lá encontrou um companheiro temporário com quem engendrou Sheinbira, uma fêmea. Sandra repetiu a história da família: não quis a cria. Como sua própria mãe, não tem instinto maternal. De Sheinbira se perdeu a pista. Foi comprada por um intermediário e acredita-se que esteja em algum lugar da Ásia. Sandra continua sozinha. É o único animal dessa espécie na Argentina.

Até aqui é a história previsível de um animal em cativeiro. O que aconteceu a partir de 2014 é muito menos previsível. A Associação de Funcionários Públicos e Advogados pelos Direitos dos Animais (Afada), representada pelo advogado constitucionalista Andrés Gil Domínguez, considerou que a situação de Sandra, "encerrada em uma caixa de concreto", era intolerável e recorreu aos tribunais para exigir que deixasse de ser considerada "coisa" ou "objeto", conforme estabelece o Código Civil e Comercial da Argentina. Em março de 2015, o assunto chegou ao Tribunal Contencioso, Administrativo e Tributário número 4 da Cidade de Buenos Aires, dirigido pela juíza Elena Liberatori. E aí começou a ser gestada uma sentença sensacional. Começou também a ganhar forma uma peculiar relação afetiva entre uma juíza progressista e acostumada à polêmica e uma orangotango solitária e, segundo seus cuidadores, cronicamente deprimida.

Clique AQUI para ler a íntegra da reportagem no El País. Crédito da foto: Natacha Pisarenko / AP. 

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Vazajato: "Nós já vimos o futuro, e as respostas estão lá"

The Intercept Brasil continua fazendo história e devolvendo ao jornalismo brasileiro, que deteriorou nas últimas três décadas de forma acelerada, embora com altos e baixos, e vertiginosamente no último quinquênio, o que ele tem de fundamental: informação, independência, imparcialidade, respeito ao leitor, compromisso com a verdade.
Neste texto publicado há dois dias, o saite analisa o comportamento da imprensa brasileira e faz uma afirmação animadora.

A quem interessa a narrativa dos 'hackers criminosos' na #VazaJato?

Por Leandro Demori e Glenn Greenwald, The Intercept Brasil, 17/6/19

Durante cinco anos, a Lava Jato usou vazamentos e relacionamentos com jornalistas como uma estratégia de pressão na opinião pública. Funcionou, e a operação passou incólume, sofrendo poucas críticas enquanto abastecia a mídia com manchetes diárias. Teve pista livre para cometer ilegalidades em nome do combate a ilegalidades. Agora, a maior parte da imprensa está pondo em dúvida os procuradores e o superministro.

Mas existe uma força disposta a mudar essa narrativa. A grande preocupação dos envolvidos agora, com ajuda da Rede Globo – já que não podem negar seus malfeitos – é com o "hacker". E também nunca vimos tantos jornalistas interessados mais em descobrir a fonte de uma informação do que com a informação em si. Nós jamais falamos em hacker. Nós não falamos sobre nossa fonte. Nunca.

Já imaginou se toda a imprensa entrasse numa cruzada para tentar descobrir as fontes das reportagens de todo mundo? A quem serve esse desvio de rota? Por enquanto nós vamos chamar só de mau jornalismo, mas talvez muito em breve tudo seja esclarecido. Nós já vimos o futuro, e as respostas estão lá.

Clique AQUI para ler a íntegra.

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Um movimento pelos movimentos democratizantes

Todo super-herói tem uma identidade secreta. A do BatMoro apareceu agora, com os vazamentos da Lava Jato, revelando que BatMoro é de fato o Curinga.
O Brasil não precisa de um super-herói na justiça, precisa é de democratizar a justiça. A justiça brasileira só prende pobres, a justiça brasileira é feita para prender pobres. A polícia brasileira existe para reprimir trabalhadores, para prender e matar pobres. A segurança pública brasileira precisa ser democratizada, assim como a educação, a saúde, o transporte, a moradia, a terra, a previdência, o ambiente.
Democratizar é pôr a serviço da coletividade, em vez servir a uma minoria de ricos e de castas privilegiadas. Democratizar é distribuir riquezas e poder. A coletividade precisa decidir sobre o que a afeta.
Não basta ter eleição de quatro em quatro anos, não basta delegar o poder a eleitos sem compromisso com seus eleitores e que se submetem aos interesses dos ricos que têm acesso aos gabinetes. É preciso democratizar as decisões, é preciso democratizar as instituições.
Banqueiros, industriais associados ao grande capital internacional, latifundiários, castas de servidores públicos privilegiados a serviço dos ricos não democratizarão o poder que detêm.
A democracia é o poder da maioria e precisa ser conquistada pela maioria. Mais do que a maioria, porque se a gente for ver, os interesses coletivos são de 99,99% da população, só uma pequeníssima parte da população é formada pelas castas de servidores privilegiados e capitalistas. Democratizar é submeter essa ínfima minoria aos interesses da imensa maioria.
Precisamos de movimentos pela democracia, precisamos de movimentos que elevem a palavra democracia, que universalizem a palavra democracia, que democratizem a democracia.
Assim como há movimentos dos sem-terra e dos sem-casa, que são movimentos pela democratização da terra e da moradia, do campo e da cidade, precisamos também de movimentos pela democratização da educação, pela democratização da saúde, pela democratização dos meios de comunicação, pela democratização da segurança pública, pela democratização da justiça, pela democratização dos transportes, pela democratização do ambiente -- e esta última é a bandeira mais importante do século XXI, porque, se quisermos ter futuro, se quisermos para nossos descendentes um mundo como o que tivemos, teremos de mudar radicalmente nossa relação com o ambiente, para impedir que a destruição que causamos na Terra leva a espécie humana à extinção.
Precisamos de movimentos democratizantes em todas as áreas, que definam o que é, por exemplo, democratizar a segurança pública, ou democratizar a comunicação. Precisamos encher as ruas com movimentos pela democratização, precisamos construir a democracia.
Todas as bandeiras de democratização estavam presentes na Constituição de 1988 e estão em vigor, mas não foram colocadas em prática, porque os brasileiros não foram mobilizados para isso, porque não tomaram consciência dos direitos constitucionais democráticos que conquistaram, porque essas conquistas foram até certo ponto desejos dos legisladores, e permaneceram apenas no papel, sujeitos à vontade política dos governantes.
Os governos do PSDB e do PT, por exemplo, efetivaram direitos democráticos, mas pouco mobilizaram a população para defendê-los. O governo golpista e o governo atual, resultado direto do golpe, estão destruindo os direitos de forma autoritária, sem consulta popular, sem respeito à Constituição e sem que os brasileiros reajam, porque não foram educados politicamente para se mobilizar e defender seus direitos, para se reconhecerem neles.
No entanto, os direitos sociais são conquistas democráticas e precisam ser defendidas pelos brasileiros. Mais do que defendidos, precisam ser conquistados, para que sejam duradouros.
O direito à aposentadoria precisa ser conquistado por um movimento popular democrático. O SUS precisa ser conquistado por um movimento popular democrático. A educação pública gratuita de qualidade para todos precisa ser conquistada por um movimento popular democrático. A segurança pública precisa ser conquistada por um movimento popular democrático. A justiça precisa ser conquistada por um movimento popular democrático. O transporte de qualidade precisa ser conquistado por um movimento popular democrático.
Um Brasil democrático precisa ser conquistado por um movimento popular democrático.
Isso nada tem de comunista ou socialista, porque a questão não é comunismo nem socialismo, a questão é democracia, é a efetivação do que a humanidade consagrou como direitos no final do século XVIII, na Revolução Francesa, também chamada de revolução burguesa: igualdade, liberdade, fraternidade.
Para que existam igualdade, liberdade e fraternidade, é preciso existir democracia, é preciso que a coletividade participe e decida sua vida, é preciso que conquiste os direitos democráticos, é preciso que a minoria se submeta aos interesses coletivos.
Nenhum super-homem nos dará a democracia, a democracia é construída pelos homens comuns.

domingo, 16 de junho de 2019

A destruição do Brasil pela larva jato

Desviar dinheiro público, receber propina, superfaturar obras e produtos são crimes gravíssimos que devem ser combatidos com rigor e punidos de forma exemplar. O que revolta na larva jato é que ela usou o combate à corrupção como bandeira política para derrubar um governo, perseguir um partido, prender um líder popular e fraudar uma eleição. Como combate à corrupção, não deixa saldo nenhum, deixa sim um passivo monstruoso de desmonte social, crise econômica profunda e destruição nacional. Cometeu um crime muitas vezes mais grave.
Os vazamentos do The Intercept Brasil confirmam o que qualquer um que pensa já sabia. Falta agora apenas mostrar a origem da larva jato: quem a inventou, como, onde, por que, para que. Isso também qualquer um que pensa sabe, o que falta são as provas.  

A Lava Jato usou o Judiciário para fins políticos

Por João Filho, The Intercept Brasil, em 16 de Junho de 2019, 9h09

Suspeitava-se que a Lava Jato era um grupo político articulado entre membros do Ministério Público e o judiciário. Os indícios apontavam um conluio entre procuradores e um juiz que atuava para influenciar o jogo político-partidário e manipular a opinião pública. Faltava o batom na cueca. Não falta mais.
Os diálogos revelados pelo Intercept mostram que a Lava Jato desfilava como uma deusa grega da ética na sociedade, mas atuava à margem da lei na alcova. Em nome do combate à corrupção, o conluio atropelou princípios jurídicos básicos e arrombou o estado de direito. As provas são tão explícitas que não há mais espaço para divergências.
A Lava Jato usou indevidamente o aparato jurídico para atender interesses políticos. O Código de Ética do Ministério Público, o estatuto da magistratura e a Constituição foram todos burlados. É um caso claro de corrupção.
Durante o processo que levou um ex-presidente para a cadeia, o juiz orientou, recomendou alterações de estratégias, antecipou uma decisão e até indicou uma testemunha para acusação. A defesa, que reiteradamente pediu a suspeição do juiz, fazia papel de trouxa enquanto ele e o procurador combinavam estratégias de acusação pelos seus celulares.

Clique AQUI para ler a íntegra.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

É preciso resgatar da extrema direita os símbolos nacionais

Só porque eu tenho escrito isso desde que o golpe começou.
Resgatar ou criar novos símbolos, porque os símbolos brasileiros são ridículos e impostos por elites delirantes, colonizadas e subservientes aos europeus: um hino imenso que ninguém sabe cantar, as cores da bandeira do império português e que não representam mais nada, sem falar no fato que a direita veste a camisa amarela da corrupta CBF. Precisamos de símbolos autênticos, que certamente não serão a bandeira vermelha, a foice e o martelo etc., que usadas por outras minorias.
Agora, deixar para a extrema direita entreguista que detesta o Brasil e seu povo a apropriação dos símbolos nacionais é o fim da picada. A não ser para desmoralizá-los de uma vez por todas, e mostrar que precisamos de símbolos autênticos, populares.

É preciso resgatar da extrema direita os símbolos nacionais

Em várias democracias ao redor do mundo, radicais têm se apropriado de bandeiras nacionais para poder chamar vozes discordantes de inimigos da pátria

Oliver Stuenkel, El País, 12/6/19

Em um fim de semana recente, ao sair de casa para correr no Parque Ibirapuera, em São Paulo, minha mulher questionou a escolha da minha camisa – da seleção brasileira. "Vão achar que você é bolsominion", alertou e me lembrou das manifestações pró-governo previstas para o dia seguinte na Avenida Paulista.
De fato, verifica-se hoje uma tendência crescente de apropriação de símbolos nacionais por movimentos de extrema direita tanto no Brasil quanto em outros países. Isso faz parte de uma estratégia sofisticada, pois permite uma suposta divisão da população entre patriotas de um lado e inimigos da pátria de outro.
Na Finlândia, por exemplo, usar uma camisa estampada com o símbolo nacional – o leão e a cruz – era comum no passado, mas seu uso hoje está fortemente associado a grupos xenófobos. Incomodada com o controle da extrema direita sobre o símbolo, uma agência finlandesa de design chegou a pedir, poucos anos atrás, sugestões para criar símbolos alternativos, que cidadãos moderados poderiam usar sem ser confundidos com radicais da direita. "Grupos extremistas sequestraram símbolos nacionais, fizeram do nacionalismo uma palavra suja e basicamente roubaram o direito de todos nós nos orgulharmos de nosso país", explicou Karri Knuuttila, um dos principais membros da iniciativa, à época.
Nos Estados Unidos, o presidente Trump tem sistematicamente tentado se apropriar da bandeira nacional, alegando (incorretamente) que seus adversários evitavam usá-la em eventos – e que, portanto, não seriam patriotas.

Clique AQUI para ler a íntegra no El País.

A lucidez emerge

O Brasil vem sendo varrido há quatro anos por um vendaval de insanidade, mas a lucidez não foi eliminada e vai emergindo aqui e ali, e há de se tornar uma força poderosa, majoritária, agora que chegamos ao máximo da autodestruição, com um governo absolutamente incapaz, e que o fogo que incendiou tudo, a tal operação larva jato e seus executores (quem foi seu idealizador? Como ela se originou? Por quê? Para quê? O jornalismo investigativo --  uma redundância, porque todo jornalismo deve ser investigativo, mas o jornalismo brasileiro se tornou tão oficial, tão parcial, tão porta-voz do capital que foi preciso reforçar o jornalismo com o adjetivo investigativo para diferenciá-lo do restante -- ainda terá de responder a estas perguntas) são desmascarados (a operação não foi resultado espontâneo da seca nem de um fósforo imprevidente, foi uma queimada proposital). Com a serenidade da sabedoria.

Da imparcialidade do magistrado 

Sílvio Luís Ferreira da Rocha, juiz federal, no Justificando, em 13/6/19.

O Juiz, como agente estatal, que exerce a jurisdição, atua em caráter impessoal e apenas por facilidade de linguagem fala-se nele como sujeito do processo. A impessoalidade é uma das notas características mais importantes da jurisdição e dela decorre desdobramentos sistemáticos como a imparcialidade.[1] De acordo com Alexandre de Moraes, “o direito a um juiz imparcial constitui garantia fundamental na administração da Justiça em um Estado de Direito e serve de substrato para a previsão ordinária de hipóteses de impedimento e suspeição do órgão julgador”.[2]

A imparcialidade é uma das características da jurisdição. A jurisdição é atividade estatal imparcial por que o Estado-Juiz está acima das relações que julga e não tem interesse no litígio submetido a julgamento e por essa razão permite-se à parte requerer o afastamento da lide de juiz considerado impedido ou suspeito pela forma prevista na lei.

A imparcialidade é uma garantia processual de que o processo será justo. A imparcialidade judicial reclama a neutralidade do órgão julgador; ela significa desinteresse e neutralidade; consiste em colocar entre parênteses as considerações subjetivas do julgador. É a ausência de preconceitos.

Clique AQUI para ler a íntegra no saite Justificando.

sábado, 8 de junho de 2019

O fim do mundo está a caminho, de verdade

Mais uma vez a lucidez da Eliane Brum.

A potência da primeira geração sem esperança

Os adolescentes que lideram a greve climática encarnam a mais importante adaptação ao planeta em colapso e demonstram ser mais próximos dos povos da floresta do que de seus avós de tradição europeia.

Eliane Brum, El País, 5/6/19

Em maio, encerrei uma palestra sobre a Amazônia e a criação de futuro, na universidade de Harvard, nos Estados Unidos, afirmando que a esperança, assim como o desespero, é um luxo que não temos. Com um planeta superaquecendo, não há tempo para lamentações e para melancolias. Precisamos nos mover, mesmo sem esperança. Assim que terminei, um grande empresário brasileiro fez uma manifestação apaixonada em defesa da esperança e foi aplaudido entusiasticamente por parte da plateia. A esperança, e não a destruição acelerada da Amazônia ou a emergência climática global, foi o assunto do debate que veio a seguir. Alguns entenderam que eu era uma espécie de inimiga da esperança e, portanto, uma inimiga do futuro (deles). A reação é reveladora de um momento em que a novíssima geração, a das crianças e adolescentes, tem enfiado o dedo na cara dos adultos e mandado eles crescerem.
(...)
A questão da esperança apareceu, para mim, enquanto acompanhava a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e a destruição do rio Xingu, na floresta amazônica. Uma – a construção – resultando na outra – a destruição. Vi pessoas que lutaram contra a morte e que viram seus companheiros tombarem a tiros nas lutas do passado pela floresta, mas que só naquele momento sentiam como se houvessem chegado ao fim da história. Belo Monte se erguia violando todas as leis e violando também os corpos dos mais frágeis – o que faz ainda hoje –, num governo do partido que haviam ajudado a fundar. As casas eram destruídas e incendiadas, a floresta queimava, os bichos morriam afogados, em convulsão. O mundo amazônico se transfigurava.
(...)
Lembro que um ano antes, na Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP de 2014, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro disse: “Os índios entendem de fim de mundo porque o mundo deles acabou em 1500”. Sua provocação referia-se ao fato de que, talvez, se tiverem esse desejo, os indígenas possam nos ensinar a viver depois do fim do mundo representado pela emergência climática, porque entendem de fim de mundo, já que o deles acabou com a invasão europeia.
Ao mergulhar no rio de pensamentos outros, entendi que a catástrofe não é o fim, está no meio
A frase impactou a mim e a tantos que lá estavam, mas só fui compreendê-la por completo quando passei a viver na Amazônia e a me expor a outros modos de vida. E outros modos de vida são também outros modos de pensamento. Ao mergulhar nesse rio de pensamentos outros, entendi que a catástrofe não é o fim, está no meio. Entendi isso com o meu corpo, o que faz toda a diferença, ao conviver com pessoas que tinham vivido várias catástrofes, pessoas para as quais o mundo havia se transfigurado várias vezes, e a vida se inventava pela resistência. Mas uma resistência com uma dimensão diferente da que conhecemos a partir da experiência ocidental branca. Uma resistência que não é a do fardo ou a da cruz, a da resignação martirizada, nem a da vingança e a da espada. O riso de desaforo era parte dessa resistência, que Viveiros de Castro chama de “rexistência”: “Os povos indígenas não podem não resistir sob pena de não existir como tais. Seu existir é imanentemente um resistir, o que condenso no neologismo rexistir”.
(...)
Escrevi, meses atrás, na minha coluna no jornal El País de Madri, que hoje a disputa se dá sobre os passados. Do Brexit ao trumpismo e ao bolsonarismo, o debate do presente abandonou o horizonte do futuro para se dedicar a passados que nunca existiram. Caricaturas como Donald Trump e Jair Bolsonaro conseguem tanta adesão (também) porque a dificuldade de imaginar um futuro em que se possa viver alcançou níveis inéditos: pela primeira vez, o amanhã se anuncia como catástrofe. Não como catástrofe possível, como no período da Guerra Fria e da destruição pela bomba atômica. Mas como catástrofe dificilmente evitável, já que o aquecimento de no mínimo 2 graus Celsius da temperatura da Terra é quase certo. Mas isso num modo otimista. Os fatos indicam que estamos nos dirigindo para 3 ou 4 graus, o que terá um impacto absolutamente tremendo.

Clique AQUI para ler a íntegra no El País.