sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Guiomundo, mas pode me chamar de Raí

Sujeito de sorte, esse Raí. Podia se chamar Guiomundo, afinal, seu pai, Raimundo, gostava de juntar sílabas do seu nome e do nome da mulher para formar os nomes dos filhos. Já tinha posto o nome Raimar em um quando dona Guiomar deu um basta naquela excentricidade. Sujeito de sorte, o Raí: dos dez filhos da sua mãe, quatro morreram – ele, o último, sobreviveu, cresceu – muito, inclusive: 1,89m –, virou atleta, craque, famoso. Sujeito de sorte mesmo: podia ser feio como seu irmão mais velho, o extrovertido Sócrates, e, embora tímido – é ele quem diz –, acabou galã – são elas que dizem.
E dizem os sábios que não há sorte sem merecimento. Raí, além do trato refinado à bola, tem em comum com o outro craque da família o caráter, ao que parece a maior herança deixada por seu Raimundo. Eles bem que podiam se chamar “os filhos do Raimundo”, embora este fosse ruim de bola. Dois irmãos foram profissionais, mas todos jogavam bem, exceto Sófocles, que por isso, é claro, foi parar no gol. Família grande tem essa vantagem: dá pra fazer time completo.
É sorte ter bons pais, é sorte ter muitos irmãos, é uma felicidade crescer numa casa com muito espaço, sempre repleta de gente, familiares vindos do interior, muitos amigos. Gente entrando e saindo, mesa repleta e comida farta, conversa na varanda, depois do jantar. Futebol no campinho perto de casa e boa escola. Quem cresce assim tem muita chance de ser feliz e de proporcionar felicidade aos outros.
Herança, porém, é coisa que muitos põem fora. O que se recebe no lar é preciso depois ser construído, quando a casa da gente passa a ser o mundo e uma multidão de desconhecidos substitui a família e os amigos. Ainda mais para quem fica famoso. Para quem, ao encerrar uma carreira de sucesso, sempre breve no futebol, tem de encontrar outro rumo e levar vida equilibrada. Raí fez mais que isso: ajuda crianças e adolescentes a também descobrirem seu rumo com equilíbrio.
Homem de caráter e de sorte, esse Raí tem um grave defeito: não jogou no meu Galo, não deu à massa o orgulho de mais um título nacional, como Telê nos deu, em 1971. O mesmo Telê que de tanto exigir dedicação e treinamento fez de Raí um craque completo, como poucas vezes se viu. Confesso que, mesmo odiando o tricolor paulista, que nos “roubou” o título de 1977, torci sinceramente pelo time de Telê e Raí. De certa forma, a conquista do Mundial de Clubes, em 1992, foi como se Telê, Cerezzo e Sócrates – Raí, afinal, era Sócrates! – tivessem, enfim, conquistado a Copa do Mundo de 1982, com o mesmo futebol refinado, mais, digamos, “competitivo”, e com um pouco de sorte...
A sorte que faltou em 82, a sorte do Raí. Homem de sorte esse Raí, que pôde dar ao irmão a alegria que merecia ter tido e lhe faltou. Que cresceu cercado de homens, que lhe serviram de referência, e vai envelhecer cercado de mulheres – três filhas e uma neta – que lhe dão amor. Sinceramente, com tamanha sorte podia até se chamar Guiomundo. 

(Texto vencedor do concurso "Eu Escritor", em 2012, e que fez parte do livro "Todo mundo tem uma história pra contar", comemorativo dos 20 anos do Museu da Pessoa.)