As discussões da esquerda de meio século atrás continuam na ordem do dia, ou voltaram a ela. Em meados dos anos 1970, depois que a luta armada foi derrotada pela ditadura militar, o que restou da esquerda revolucionária, isto é, aqueles que não foram assassinados, presos ou exilados, passaaram a avaliar seus erros e discutir com atuar dali pra frente. Havia muitas divergências, a esquerda autoproclamada marxista-leninista se dividia em inúmeras organizações clandestinas, mas todas concordavam em duas coisas: a afirmação da revolução socialista e a avaliação de que a luta armada tinha sido um erro. O que fazer numa conjuntura em que a esquerda, que até 1968 demonstrara força impressionante, apesar da ditadura, a ponto de tentar derrubar o governo, estava agora muito enfraquecida, tinha sido golpeada quase mortalmente? Esta era a questão.
Lembremos: as lideranças trabalhistas, que estavam no poder até 1º de abril de 1964, e seus apoiadores comunistas, do PCB, o "partidão", ou seja, a esquerda reformista, tinham foram mortos, presos ou exilados na primeira hora, portanto uma década antes; a esquerda revolucionária, que foi a parte que radicalizou entre 1964 e 1968, rompendo com os reformistas, e que liderou um movimento de massas principalmente estudantil, que fez greves e manifestações de massa nas ruas, também foi dizimada após o AI-5, pela ditadura total.
Enquanto isso, a ditadura militar dominava o país com censura à imprensa e às artes, controle dos sindicatos e da política convencional, na qual só dois partidos eram tolerados, a Arena, partido do governo, e o MDB, partido pretensamente da oposição. A máquina repressiva do governo funcionava a todo vapor, também clandestinamente, fora do controle até mesmo do general presidente, perseguindo, prendendo, torturando, matando, desaparecendo com corpos e o que mais fosse necessário para eliminar fisicamente toda e qualquer oposição.
Era nessas condições extremamente adversas, traumáticas, obscurantistas que a esquerda revolucionária sobrevivente e clandestina atuava, isto é, pensava, discutia, fazia autocrítica da atuação anterior e elaborava suas novas formas de atuação. Sob risco permanente de ser descoberta, presa, torturada, morta e desaparecer, como continuava acontecendo. De tempos em tempos, a repressão da ditadura fazia novas prisões e eliminava "comunistas" -- o caso mais lembrado é o da emboscada que fuzilou o célebre Carlos Marighela, mas há inúmeros outros.
O fato que eu quero ressaltar é que, nessas condições extremamente frágeis, a esquerda revolucionária brasileira optou majoritariamente por um programa político, sintetizado no lema "Pelas liberdades democráticas", que defendeu a aliança com todos os setores burgueses que se opunham à ditadura militar com o objetivo de alcançar a volta da democracia burguesa. E foi o que veio.
Desse ponto de vista, a esquerda revolucionária foi bem-sucedida; até mesmo uma ala dos militares, liderada pelo general presidente Geisel, pelo general Golberi e pelo general presidente Figueiredo, hegemônica, passou a defender a volta da democracia e tomou uma série de medidas nesse rumo: suspensão da censura à imprensa, anistia, liberdade partidária, eleição direta de governadores e outras, de forma que ainda sob o último governo militar parecia que o Brasil era novamente uma democracia burguesa, condição que ele proclamava.
Faltava só eleger o presidente pelo voto direto. E nisso a ditadura militar não transigiu, apesar da campanha popular Diretas Já!, a maior da história do país, e impediu a aprovação pelo Congresso da emenda constitucional com esse teor, de forma que tivemos de esperar mais um governo não eleito pelo povo depois do último presidente militar. Certamente, a ditadura não queria correr o risco de ver eleito Brizola ou outro líder de esquerda e a volta do reformismo, com um acerto de contas com os militares.
Se a gente pode dizer que foi vitoriosa a bandeira das liberdades democráticas levantada pelo esquerda revolucionária nos anos 70 para unir todos os setores oposicionistas e derrubar a ditadura, com mais certeza se pode afirmar que o projeto dos militares de devolverem o poder aos civis foi plenamente exitoso. A eleição direta do primeiro presidente adiada para 1989, portanto 25 anos depois do começo da ditadura militar (incluídas aí a presidência do Sarney e a eleição do Collor, dois filhotes da ditadura), foi só o êxito final, mas não foi o único nem o principal. Com a anistia, os militares garantiram que seus crimes não seriam punidos; com a entrega da legenda do PTB para uma aliada, garantiram que Brizola não reacendesse a chama do trabalhismo forte e ascendente entre 1945 e 1964; com a liberdade partidária, dividiram o MDB, que vinha se tornando de fato oposicionista.
Política é isso mesmo, um jogo de xadrez, um jogo de movimentação de peças e ocupação de espaços, de vitórias e derrotas. O que eu quero ressaltar é o significado do aparente sucesso da bandeira das liberdades democráticas levantada pela esquerda revolucionária. Dos militares redemocratizantes às organizações marxistas-leninistas, todos estavam disputando espaço, ou, como se diz, a hegemonia no que viria a ser novo regime civil pós-ditadura. E a esquerda dita revolucionária renunciou ao horizonte revolucionário.
Em nenhum momento desde então, e já se vão quase cinquenta anos, a esquerda revolucionária brasileira sobrevivente da ditadura militar, cuja obra mais expressiva foi o PT, colocou a conquista do socialismo como objetivo posterior e superior à conquista da democracia burguesa. A revolução, o socialismo, a superação do capitalismo e da democracia burguesa foram completamente abandonados. Com o passar do tempo -- e das eleições burguesas -- o objetivo da esquerda marxista-leninista foi se transformando na eleição do Lula presidente, e depois que esse objetivo foi alcançado, na sua reeleição, na eleição e reeleição da sua escolhida, na sua nova eleição, e novamente e mais uma vez, no ano que vem.
A esquerda marxista-leninista foi fagocitada pelo PT, que se transformou no partido da ordem burguesa, partido no poder em praticamente todo o século XXI, de tal forma que o partido e os políticos que contestam a ordem são da extrema direita. Era isso mesmo que ela pretendia? Ser o partido da ordem burguesa? Ou as "liberdades democráticas" eram só uma bandeira tática para unir a oposição e derrubar a ditadura?
O fato é que, depois de derrubada a ditadura e alcançada a democracia burguesa, o Brasil não deu nem um passo além para a esquerda. O ápice foi a Constituição de 1988, cuja regulamentação ficou pendente, incapaz de afirmar importantes avanços sociais, permanentemente dependente das decisões do STF, um tribunal claramente político, marcado por decisões questionáveis, por avanços e retrocessos e que hoje se posiciona à esquerda do governo, tanto este se encaminhou para a direita. A conquista das "liberdades democráticas" não foi, definitivamente, um meio para se alcançar a revolução e o socialismo, objetivo da esquerda marxista-leninista completamente abandonado.
O vídeo abaixo suscita a mesma questão de outra forma: em nome da revolução, deve-se abandonar então a luta por objetivos imediatos? É evidente que não, mas, como disse, a esquerda só tem objetivos imediatos, não tem um objetivo final, abandonou o socialismo e a revolução. O governo petista -- melhor dizendo lulista, ou lulopetista -- sequer é reformista, nem o atual nem os anteriores. Os governos lulupetistas estão muito à direita do que foram os governos trabalhistas pré-64.
Em resumo, falta à esquerda marxista-leninista ser marxista-leninista, falta à esquerda revolucionária almejar a revolução, falta à esquerda brasileira ser de fato esquerda. Falta ao Brasil um partido com um programa de esquerda, com militância, propaganda e ações de esquerda, que participe da vida política burguesa afirmando sempre que seu objetivo é o socialismo e apontando as bandeiras concretas que defende para atingir esse objetivo. Mais ou menos um partido que diga assim ao povo: nós vamos fazer isso e isso e isso, se chegarmos ao poder, vamos implantar o socialismo, vamos fazer uma revolução, é só você me dar a chance. Não existe isso no Brasil. Os grupos de esquerda ditos revolucionários que ainda existem são inexpressivos, sectários e incompetentes, seus projetos não são factíveis e sequer chegam aos trabalhadores ou são compreendidos por eles. A impressão que eu tenho é que a esquerda brasileira dita revolucionária não tem a menor ideia do que fazer realmente para conquistar o poder e transformar o Brasil numa nação socialista.
Qual o programa da revolução brasileira? Programa 20 minutos, com Breno Altman e Nildo Ouriques.
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