sábado, 20 de fevereiro de 2010

Interesse social X interesse do capital: caso exemplar

A notícia abaixo, cuja íntegra está no jornal Hoje em Dia, mostra de forma cristalina, como raramente pode ser vista, a essência do capitalismo e como ele funciona no Brasil. De um lado, o interesse social – a saúde e todos a ela ligados: população, profissionais, autoridades; do outro lado, os interesses comerciais – o capital e todos a ele ligados: comerciantes, industriais, laborartórios, gente cujo primeiro interesse é ganhar dinheiro, seja como for. O Estado se divide entre os dois lados: o Executivo, a favor do interesse social e o Judiciário, em defesa do capital.

O interesse social é que remédio seja usado para combater doenças e ajudar doentes; deve ser prescrito por médico, vendido por farmacêutico e comprado com receita. O estabelecimento que vende remédio é a farmácia. O lucro com medicamentos não pode ser abusivo e o Estado deve prover aqueles que não podem pagar por eles, mas têm o mesmo direito à saúde.

O interesse capitalista é que remédio é mais um produto a ser consumido: quanto mais vender melhor, mais lucro; sendo mercadoria, precisa de propaganda para incentivar o consumo, como qualquer mercadoria, e pode ser vendida junto com outras mercadorias; o estabelecimento que vende remédio deve ter o modelo de organização que reduz despesas e dá mais lucros, o modelo self service, com poucos funcionários, no qual o próprio cliente pega o produto na prateleira, enche a cesta e a leva direto ao caixa, como num supermercado.

Os países capitalistas mais desenvolvidos ultrapassaram essa fase, separando o interesse social do interesse do capital. É o modelo social-democrata europeu, no qual a atuação comercial em atividades de interesse social é regulamentada (é bem este o caso da Anvisa) e o Estado oferece serviços essenciais que o capital não consegue oferecer, pois seus interesses entram em conflito com os interesses sociais (educação, saúde, transporte, segurança).

No Brasil, temos a tendência de seguir o modelo americano, que é bem diferente - do europeu, mas também do brasileiro. Esse negócio de drugstore, por exemplo, foi copiado de lá. O modelo americano permite tudo, mas o direito individual é levado em conta e a Justiça funciona. Ou seja, quem se sente lesado vai ao Judiciário e recebe indenização. No Brasil, a Justiça não funciona; não serve, portanto, para regulamentar essa relação entre interesse comercial e interesse social, ao contrário. Aqui, o Executivo interfere a favor do interesse social, à maneira europeia, e o Judiciário, frequentemente, faz prevalecer os interesses do capital.

As farmácias de hoje (tem gente que diz "moderna", porque ser moderno é bom, aparenta evolução, mesmo quando a "evolução" é para pior, isto é, quando torna pior a nossa qualidade de vida) são um contrassenso que só o capitalismo justifica. Na drugstore em que se compra remédio, compra-se também revista; da mesma forma que se compra biscoito se compra um medicamento... Esse tipo de loja tem muitas vantagens, sim, funciona 24 horas, traz comodidades para o consumidor. Só não pode ser farmácia, porque são dois tipos de estabelecimento diferentes. Farmácia é farmácia, loja de conveniências é loja de conveniências. Separando os dois, fica tudo no lugar certo. O que prevalecerá? O interesse social (Anvisa) ou o interesse do capital (Justiça)?

TRF mantém venda de produtos nas farmácias
Estabelecimentos estão desobrigados de cumprir norma da Anvisa, que restringia a comercialização em todo o país

Luciana Rezende - Repórter - 19/2/2010 - 21:11
A queda de braço entre as farmácias e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) teve novos rounds nesta sexta-feira (19). Pela manhã, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, em Brasília, chegou a suspender parcialmente os efeitos da liminar que garantia às empresas filiadas à Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) o direito de não cumprir as novas regras do setor. Elas começaram a vigorar na quinta-feira (18). (...) Farmácias e drogarias de todo o país, filiadas à entidade, não estão mais obrigadas a cumprir a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 44/2009 e as Instruções Normativas (IN) 9 e 10 da Anvisa. Entre outros pontos, elas proíbem que medicamentos, inclusive os de enda livre, fiquem dispostos nas prateleiras das farmácias, ao alcance dos clientes. Eles devem ficar atrás do balcão. Além disso, a norma impede as redes de atuarem como drugstores, vendendo artigos como balas, refrigerantes, ração, pilhas, biscoitos etc.
http://www.hojeemdia.com.br/cmlink/hoje-em-dia/noticias/economia-e-negocios/trf-mantem-venda-de-produtos-nas-farmacias-1.80624