segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Nova fase

Durante praticamente dois anos deixei este jornalaico de lado. Retomo-o agora, com a intenção de imprimir-lhe uma nova fase.

Na última postagem regular, publiquei uma foto antiga do Palácio da Liberdade, sem as grades que a caracterizam hoje, e perguntei, no título: "Vai tirar as grandes?" A pergunta se dirigia ao governador recém-empossado Fernando Pimentel. Era uma pergunta com caráter libertário (tirar grandes, recuperar o que a ditadura nos tirou, ampliar espaços públicos, reformar a Praça da Liberdade e andar na direção da civilização, da democracia) feita a quem tinha poder e dever de cumprir a sugestão, uma vez que político de esquerda, do principal partido do país e militante estudantil perseguido na época (1968) em que a ditadura instalou as grades no palácio.

Da data da postagem (8 de fevereiro de 2015) até hoje muita coisa aconteceu, não só impedindo que Belo Horizonte se tornasse mais civilizada e democrática, como fazendo o Brasil retroceder numa velocidade inacreditável. A minha reivindicação ao novo governador parece hoje infantil diante do quadro caótico do país; o próprio Pimentel passou os dois primeiros anos do seu mandato promissor escondido, perseguido pelos novos mandatários da nação -- procuradores, polícia, juízes, velha mídia, políticos velhacos -- e provavelmente negociando acordos para salvar seu governo. A presidenta recém-reeleita foi deposta por um golpe, uma quadrilha se apoderou do governo federal e impõe a todos os brasileiros -- à imensa maioria que venceu as eleições de 2002, 2006, 2010 e 2014 e à minoria derrotada que vestiu a hipócrita camisa da corrupta CBF para protestar contra a corrupção -- uma agenda de sacrifícios gigantescos que poupa às castas de mandatários citada.

A reivindicação feita a Pimentel no começo do seu governo continua valendo, assim como o assunto de um dos três posts que publiquei depois, a Agenda Gotsch. Inúmeras outras bandeiras no entanto se somam a elas, não só para avançar na democracia, como para impedir os retrocessos que estamos vivendo. O presidente golpista não está destruindo apenas o que foi construído até 2014, seu programa fará o Brasil retroceder à República Velha, ao período anterior à Revolução de 1930, que levou o país a elaborar pela primeira vez um projeto de desenvolvimento.

O que Temer está fazendo nem FHC e Collor, com seus programas neoliberais, chegaram a fazer. Destruir a Petrobrás, entregar a multinacionais o pré-sal e toda a tecnologia desenvolvida pelos brasileiros, quebrar as maiores construtoras e de quebra grande parte da indústria, comércio e serviços do país, afundar o Brasil numa recessão da qual ainda não se vislumbra o fim, mas que, com certeza, virá com mais desigualdade, mais pobreza, mais miséria, mais desemprego, mais insegurança, mais submissão, mais opressão e menos autoestima nos filhos desta pátria gentil. Tudo isso que em menos de um ano os golpistas estão fazendo é, como diz o título de um livro de um dos medíocres ideólogos da velha mídia transformada em partido político, livro que ninguém leu e poucos compraram, contra o Brasil.

Qualquer conhecedor de um mínimo da história sabe que o Brasil só começou a existir depois de 1930. Os golpistas de 2016 são piores do que os militares de 1964 porque, ao contrário destes, que acreditavam num tipo de desenvolvimento, querem fazer fazer o Brasil voltar a ser uma simples colônia agroexportadora, como foi desde de 1500. Neste período colonial, e mesmo depois da independência e da república, o Brasil (seu território imenso e rico e seu povo) só importava como fonte de matéria-prima e mão-de-obra para as elites fazendeiras, as oligarquias que viviam nos trópicos mas se sentiam à vontade na Europa. É o mesmo espírito dos golpistas de hoje -- barões da mídia, juízes, procuradores, empresários e políticos -- que odeiam o Brasil popular e querem transformar o país numa nova colônia.

Os golpistas não têm projeto para o Brasil, têm só um programa político para beneficiá-los, um programa imediatista, cruel, sem-vergonha, criminoso. Tivessem eles algum sentimento nacional, não destruiriam Lula, o operário que se tornou o melhor presidente capitalista do país. Tivessem alguma ideia menos rasteira do que aquelas propagadas para criar o ambiente golpista e que continuam hoje em projetos demagogos como "as 10 medidas contra a corrupção", as elites brasileiras teriam feito de Lula seu líder perene, pois no seu governo tiveram os melhores resultados econômicos. Em troca, tinham só de aceitar que milhões de brasileiros passassem a ter emprego, renda, casa; que tivessem acesso ao consumo, aos aviões, ao turismo (inclusive internacional). E à cidadania. Para consumir seus produtos, inclusive. Mas preferem conviver com uma população miserável e submissa.

As cegas, egoístas e estúpidas elites brasileiras não engoliram o "sapo barbudo", apesar de tirarem dele tudo que podiam. Veem-se agora diante de um dilema: retroceder à ditadura ou à República Velha. Os militares, ao que tudo indica, não estão dispostos mais a fazer o papel de polícia das elites. Quando foram cooptados pelas elites, fugiram do roteiro e ficaram 21 anos. Além disso, as Forças Armadas brasileiras, em especial o Exército, sempre tiveram um nacionalismo que não agrada às elites -- basta lembrar do sem-número de empresas com sufixo brás que a ditadura criou e que os governos neoliberais que vieram depois trataram de extinguir. Difícil imaginar a Petrobrás sendo destruída e o pré-sal sendo entregue aos estrangeiros num governo militar.

Por isso o projeto dos golpistas lembra mais um retorno à República Velha, quando o voto era censitário e os pobres, os negros, as mulheres não votavam. Se houver eleição em 2018, Lula -- ou outro candidato que apresentar propostas populares -- vencerá. Por isso, Lula precisa ficar inelegível, preso. Por isso, as eleições de 2018 (e de 2022, 2026...) precisarão ser canceladas, ou suas regras mudadas de tal forma que só possa ser eleito um presidente representante do governo golpista.

Golpes têm lógicas próprias. JK comandou a eleição indireta do general Castelo Branco para presidente interino, quando o presidente Jango foi derrubado pelo golpe, acreditando que haveria eleição em 1965 e ele seria eleito para completar seu projeto desenvolvimentista, que entre 1956 e 1961 gerou Brasília e os anos dourados. Mas JK acabou cassado e os militares ficaram 21 anos. Até mesmo o principal militante golpista, Carlos Lacerda, foi cassado e morreu sem voltar à política.

Quem pode imaginar o que nos reserva 2017 sob um governo golpista?

Nenhum de nós pode, mas todos temos o dever de tentar entender o que está acontecendo e o que virá. Diante do caos em que o país foi colocado pelos golpistas, a partir da militância quanto-pior-melhor da velha mídia, após sua derrota na eleição presidencial de 2014, muitos brasileiros esperam, como antes, e sem tirar lições do passado, o surgimento de um salvador da pátria. Alguns querem a volta dos militares, outros (os mesmos?) acreditam que o juiz da Lava Jato seja esse salvador.

Da minha parte, vivi a triste experiência da ditadura para me iludir com a volta dos militares ao poder. Da mesma forma, meu conceito de moralidade pública não admite um cidadão que acumula dois empregos públicos e que um dia tentou manter um deles sem precisar trabalhar, morando em outra cidade. Sei que o progresso do mundo depende de mim, de cada um de nós, de todos -- da democracia, enfim. Por mais imperfeita que ela seja, por mais imperfeitos que sejamos. A difícil prática do respeito, da tolerância, das decisões e ações coletivas, aprendendo com erros e aprimorando, é o único caminho para construir um mundo melhor.

Acredito nisso e prefiro ser assim aos 60 anos a ter me tornado um velho pessimista, cínico ou fascista.

O que mais me impressionou no golpe foi a facilidade pela qual o governo legal foi derrubado. A esquerda dizia "não vai ter golpe" -- e teve. A esquerda não preparou o povo para impedi-lo nem para resistir -- muito menos o prepara para retomar o poder, para recuperar a democracia.

Enquanto a direita demonstra competência para tomar o poder, governar ilegalmente e impor sua agenda inviável, a esquerda demonstrou incompetência para conservar o poder conquistado legalmente e reagir aos golpistas. De fato, não parece ter programa próprio, embora este programa esteja à vista de todos, basta ver o que o governo golpista faz, o que não queremos e o que queremos. É um programa diferente do colocado em prática pelos governos do PT. No poder, o PT manteve a política neoliberal acrescentando-lhe pitadas de democracia. A democracia exige muito mais.

A democracia não é o governo de um partido, é o governo de todos, cuja vontade foi desrespeitada pelos golpistas e precisa ser reafirmada pelo próprio povo, combatendo ideias elitistas, antipopulares, preconceituosas, autoritárias e fascistas.

Nenhum progresso tem sentido a não ser para o povo, nenhum governo é legítimo senão o governo do povo, não por meio de representantes distantes, corruptos e vendidos aos seus interesses pessoais e aos interesses de lobbies, mas escolhido e permanentemente fiscalizado pela participação direta de todos, ou, no mínimo, da maioria.

Quem se opõe ao golpe precisa formular, na oposição, um programa para o governo democrático que vier a suceder os golpistas, quando ele vier. Um programa que aponte os males do governo golpista, do ponto de vista dos trabalhadores, do povo, da nação, da democracia. Um programa que faça a crítica dos governos Lula e Dilma, aprimorando seus acertos e corrigindo seus erros. Um programa que contemple o Brasil em longo prazo, para pelo menos o tempo de vida de uma geração. Um programa exequível, não um programa utópico; com propostas concretas e viáveis. Um programa que tenha compromisso com o que é fundamental para os brasileiros e para os seres humanos: a democracia.

Este será o objetivo do jornalaico de hoje em diante.