quinta-feira, 18 de junho de 2020

O exemplo americano e a nossa Guerra das Malvinas


O conflito político que o Brasil vive hoje é resultado de problemas que não resolveu no passado e me faz pensar na inglória Guerra das Malvinas, que a Argentina deflagrou contra a Inglaterra em 1982.

Na sua tradição de transições aparentemente pacíficas, o Brasil saiu da ditadura militar em 1985 sem definir o papel dos militares na democracia, evidenciado exemplarmente pelo general Mark Milley, comandante das Forças Armadas dos EUA, no dia 11/6. A ditadura, inclusive, criou um problema adicional, que a Constituinte de 1987-88 absorveu, também sem resolver: as polícias militares.

O exemplo americano define que as Forças Armadas não têm papel e não podem interferir na ordem política interna. Seu papel é lutar pelo povo do país contra inimigos externos. É para isso que o exército é treinado e muito bem pago. Ponto final. É assim nos EUA e vai continuar a ser, eu errei ao posar do lado do presidente Trump, dando a impressão que as Forças Armadas participam da sua política, disse o general.

No Brasil, a confusão entre Forças Armadas e política interna se confunde com a própria República. Nisso os monarquistas sempre estiveram cobertos de razão: a Monarquia era civil. E parlamentarista, o que assegurou estabilidade de 49 anos ao Segundo Reinado. A Monarquia tolerou inclusive a existência legal do Partido Republicano, cujo objetivo era acabar com ela. A República levou um século para aceitar o Partido Comunista, que também pretendia acabar com ela.

O problema militar no Brasil começou quando o Exército voltou vitorioso da Guerra do Paraguai, como instituição nacional ligada ao povo, do qual foi formado, e passou a fazer sombra ao imperador. Tornou-se crônico com o mau exemplo do golpe de 15 de novembro de 1889. Um general derrubou o imperador e a Monarquia, numa quartelada, e assumiu o governo, dando início a uma longa história de intervenções militares na política nacional, que já dura 131 anos. Desde a proclamação, os militares brasileiros se consideram os pais e guardiões da República, para o que contam com apoio de parte dos civis, que estão sempre convocando-os a participar.

Disse que o Brasil tem tradição aparentemente pacífica de transições políticas porque na verdade a história brasileira é feita de inúmeros episódios violentos, além de uma longa violência cotidiana. 

A Independência, cantada como "um grito no Ipiranga" dado pelo próprio herdeiro do trono português, foi repleta de massacres de brasileiros republicanos em todas as partes do país, feitos por um exército de mercenários contratados por Pedro I. Quem tem dúvida procure conhecer o Massacre do Brigue Palhaço.  

A proclamação da República seguiu o mesmo caminho; aparentemente pacífica, no golpe, foi seguida de estados de sítio, revoltas, massacres, traições, covardias, dos quais o mais eloquente é a Revolta da Chibata. A tortura policial é uma instituição republicana usada para manter os pretos libertos e os pobres no seu lugar de submissão a uma ordem oligárquica.

Modernizador, nacionalista e até socializante, o longo governo de Getúlio Vargas é uma ditadura militar extremamente violenta, que se impôs pelo terror.

A ditadura militar de 1964-85 superou-a. Após o AI-5, bastava não sorrir para um fardado, ou mesmo um policial civil, para ser preso, torturado e desaparecer sem deixar vestígios, mas mesmo antes da ditadura dos porões, nos primeiros dias do golpe de 64, os episódios de violência se multiplicavam. E para retroceder mais um pouco, nas vésperas do golpe, o Massacre de Ipatinga deixou mortos um número nunca contado de operários grevistas.

Os militares brasileiros, comandados pela trinca Golberi, Geisel e Figueiredo, deixaram o governo em 1985 negociando com os civis sua impunidade pelos crimes praticados durante a ditadura, deixando a porta aperta para voltarem e ainda transferindo sua herança de violência contra o povo às polícias militares. Desde então, o Brasil vive uma guerra civil permanente, na qual milhares de brasileiros são mortos pelas polícias todo ano, número que cresce ano após ano -- em 2019 foram quase 6 mil.

O confronto evitado na transição de 1985 e na Constituinte de 1988 não desapareceu, porque, sem terem seu papel definitivamente delimitado na democracia, os militares nunca deixaram a política, apenas hibernaram, mantendo uma figura aparentemente ridícula no Congresso, que em 2018 acabou eleito presidente e encheu o governo de generais. Pior do que isso: a corrupção e criminalidade endêmica nas polícias militares fez delas um exército paralelo do próprio Exército.

O atual governo militar me lembra a Guerra das Malvinas, o que pode ser um fato alvissareiro, se se confirmar. Aquela guerra foi uma aventura cujo fracasso fulminou o exército argentino, levando ao fim da breve ditadura, à punição dos seus comandantes e à ao recolhimento das Forças Armadas dos nossos hermanos ao seu papel constitucional, cujo exemplo maior é o americano. No confronto morreram mais de 600 soldados argentinos e outros 1.600 ficaram feridos.

O governo militar atual também é desastroso nesta nova aventura fardada. Incapaz de enfrentar um vírus, de dirigir o Estado e de organizar a economia, já levou à morte mais de 46 mil brasileiros e quase 1 milhão foram contaminados. E aumenta a matança de pobres e pretos, numa guerra macabra que agora vitima crianças. 

Como a derrota dos militares argentinos na Guerra das Malvinas, a derrota do governo militar brasileiro atual na luta contra a pandemia pode decretar seu fim. É preciso que os civis sigam enfim o exemplo americano e ponham as Forças Armadas no seu lugar constitucional. Está demorando uma proposta de emenda à Constituição que deixe expresso no Artigo 142 -- o que não fez a Constituinte de 1987-88 -- que elas não têm papel na ordem nem na política internas.