segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Relato de uma jornalista no Congresso em 8/1/23

 

O vídeo acima contém um excelente relato de uma (ou um) jornalista de O Tempo que acompanhou a invasão do Congresso ontem. Ela foi cercada, agredida, roubada e ameaçada de morte com revólveres nas costas e na cintura por não estar vestida como "patriota", não se comportar como eles, ser considerada "infiltrada". 

É o único relato de jornalista que ouvi e vi até agora, porque o que aconteceu ontem foi uma versão distópica, como se diz agora, daquele documentário "A revolução não será televisionada". No Brasil de 2023 a imprensa foi interditada, não pelo governo nem pelos barões da mídia, mas pelos próprios manifestantes de extrema direita. Cobrir os extremistas é correr risco de vida. 

Tudo que vimos ontem foram imagens de longe ou posteriores feitas pela imprensa e imagens de perto feitas pelos próprios criminosos, uns imbecis alucinados que produziam provas contra eles mesmos. A imprensa, exceto essa admirável repórter, não acompanhou os fatos, como aconteceu na invasão do Capitólio, há dois anos, quando uma repórter da Globonews, por exemplo, transmitiu direito do meio da confusão, entre invasores e polícia. 

Para a extrema direita brasileira, a imprensa é inimiga. Em BH, vários jornalistas foram agredidos no acampamento em frente à sede do Exército na Avenida Raja Gabaglia. Essa situação é surreal ou distópica, como grande parte das coisas que a gente vem acompanhando na política deste século, desde o advento da internet, dos celulares e das redes sociais, porque tradicionalmente a imprensa brasileira é de direita e apoia golpes contra a democracia, o último deles o que depôs a presidenta Dilma. O que está acontecendo é o avesso disso: a globoetc. defendendo a democracia e o governo do PT, a extrema direita atacando a imprensa e as autoridades, o governo de esquerda defendendo o Estado capitalista.

No golpe de 2016, a globoetc. apoiava os manifestantes de direita, mas eles já não queriam saber dela, se confraternizavam é com a polícia. Nesses quatro anos de governo do bozo o que aconteceu foi a radicalização desse quadro, os "patriotas" (ou patriotários, na expressão da espirituosa Madeleine Lacsko) cada vez mais alucinados apoiando seu líder (?), pregando a ditadura militar, elegendo o PT e a imprensa "comunistas" como seus inimigos mortais. 

É compreensível que agora estejam chorando e gritando que foram traídos pelos militares e pelas polícias, que estes envergonham a pátria por não terem aderido ao "movimento" deles. Até mesmo seu líder (?), o "mito", os abandonou, foi se refugiar e gozar a vida na Flórida, por isso agora eles não carregam mais seu retrato nem seu nome, não se denominam mais bozoístas, mas "patriotas".

O que não é compreensível ainda é o quadro total. É um equívoco chamar o que aconteceu ontem de tentativa de golpe e aquelas hordas vestidas com uniforme da CBF de golpistas. Se eles são golpistas hoje, já o eram em 2016, quando a globoetc. os apoiava, quando de fato houve um golpe no Brasil. Golpe precisa ter cabeças e objetivos, como o de 2016, cujo objetivo era tirar o PT do poder e colocar o vice-presidente para implantar o programa neoliberal que implantou (reforma trabalhista, teto de gastos, desmonte da proteção social etc.). 

Quais eram ou são os objetivo e os líderes do golpe de ontem? O "mito" fugiu para os EUA, seus seguires civis (como as autoridades do Distrito Federal) e militares (como os militares e os policiais) foram coniventes e cúmplices, mas não assumiram a liderança do movimento, como eles queriam. Se tivessem feito isso, o golpe teria dado certo, mas não houve essa adesão. Apesar do um milhão de armas licenciadas no governo do bozo, as hordas não estavam armadas ontem, pelo menos com essas armas, pelo menos não todos, como um exército armado e treinado para o golpe. Incubadoras de terroristas sim, os acampamentos, mas não centros de treinamento de guerrilheiros, ao que parece. 

A reportagem da brava repórter contém duas informações fundamentais para entendermos o que aconteceu ontem: o comportamento dos fanáticos -- alucinados, agressivos, depredadores, ladrões, violentos, criminosos, multicriminosos como seu líder inspirador refugiado nos EUA -- e a cumplicidade da polícia, que nada fez contra os criminosos e se recusou a proteger a jornalista. 

A terceira informação importante veio do presidente Lula, ao nomear o agronegócio, os garimpeiros e madeireiros ilegais como financiadores da invasão. Essencialmente, o governo do bozo foi um governo de criminosos. Com os votos da maioria iludida da população e a cumplicidade da globoetc., chegou à presidência em 2018 um político que fez sua carreira parlamentar no crime, em seu benefício e dos seus, e foi apoiado pelo crime organizado. O governo que acabou no dia 31/12/22 pôs no poder criminosos em todas as áreas, desde as milícias e traficantes até agrotoxiconegociantes, madeireiros, grileiros, garimpeiros, ladrões de merenda escolar, ladrões do sistema de saúde, sonegadores, sem falar nos banqueiros abocanhando juros de 13%. 

Até mesmo os últimos acabaram se voltando contra o governo (basta ver a piauí, revista de banqueiros que virou uma publicação de oposição ao bozoísmo), assim como a globoetc. (com exceção da Jovem Pan, que, no entanto, ontem retirou seu apoio aos "patriotas" violentos e condenou o "vandalismo", alegando que isso é comportamento da esquerda, não da direita, que os "manifestantes" caíram na armadilha petista e perderam a razão etc.).

O novo governo tem a missão de reconstruir a ordem capitalista e o Estado de direito, dito "democracia", essa ideia tão exaltada e tão confundida, regime político tão imperfeito, mas o melhor de todos e que todos alegam defendar. Precisa agir com rigor contra seus inimigos, quer dizer, os inimigos da democracia, no entendimento da "direita democrática", com seu definem agora a imprensa, os políticos, os empresários e os intelectuais golpistas em 2016, que usaram e descartaram o bozo. 

A democracia une direita e esquerda "democráticas", embora o entendimento que têm dela seja diverso e defeituoso -- a globoetc. por exemplo não aceita democratizar a comunicação e os banqueiros não aceitam democratizar a riqueza nacional, enquanto a esquerda resiste a democratizar o poder político. 

Parece que os democratas de esquerda e de direita aprenderam que os criminosos não podem ser anistiados, devem ser exemplarmente punidos, para afirmar a democracia entre nós de forma definitiva. Sendo assim, o que vivemos hoje é mais um capítulo da redemocratização de 1985, aquela que os militares conduziram e negociaram, sem eleições diretas já, sem punição para torturadores etc., dos quais o bozo foi herdeiro mais de três décadas depois. 

No seu primeiro governo, Lula foi um conciliador; trocou o programa do PT por uma "carta aos banqueiros", colocou um grande empresário na vice-presidência, manteve a política econômica do Plano Real, ficou amigo dos latifundiários exportadores, dos empreiteiros, dos industriais, dos grandes capitalistas. Enquanto estes enriqueciam fantasticamente e a economia crescia, ainda sobrava uns trocados para melhorar a vida do povo: salários melhores, mais empregos, moradia, crédito, educação pública e SUS. 

Foram os melhores anos das nossas vidas, embora naquela época Lula tenha escolhido favorecer a destruição ambiental, para ficar do lado dos grandes capitalistas, posição que agora parece ter mudado. Tomara. É uma posição fundamental, diante das mudanças climáticas. 

O maior desafio da democracia brasileira, porém, parece ser enquadrar o crime organizado que cresceu nas últimas décadas e tomou o poder nos últimos quatro anos, infiltrando-se nas instituições do Estado, especialmente nas corporações militares e policiais. Como manter uma ordem democrática, se as forças armadas em vez de combater o crime são parceiras dele? 

Por isso, o que está em questão no Brasil, como desdobramento dos acontecimentos de ontem, não é a punição das hordas de alucinados que invadiram e depredaram os três poderes, mas a identificação, julgamento e punição exemplar dos organizadores e financiadores do "golpe", acima de todos aqueles que estão "infiltrados" nas instituições da ordem democrática, sejam políticos com mandatos, sejam funcionários públicos, sejam policiais, sejam militares, e os capitalistas que destroem o ambiente para obter lucros imensos e fáceis.

O presidente refugiado nos EUA passou quatro anos cometendo crimes impunemente, porque é tradição dos integrantes dos três poderes brasileiros se protegerem. A conferir se o que Lula e o ministro da Justiça Flávio Dino disseram ontem vai se concretizar. Seria um marco na história do Brasil.