sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Dia de Reis

Trecho do livro 17

-Vale seis, ladrão de milho!
Tio Quito deu um pulo jogando a cadeira para trás e começou a gesticular em direção ao tio Lindolfo.
-Seis só! – repetia.
Em volta deles, a meninada tentava entender aquele teatro que se repetia uma vez por ano. Na mesa estavam os quatro jogadores: papai, tio Tom, tio Quito e tio Lindolfo.
Tio Lindolfo dera as cartas.
-Eu sou pé – disse.
E fez a primeira mão matando um três jogado pelo papai com um sete de ouros. Na segunda, tio Quito foi obrigado a gastar o zap, a carta mais alta do jogo, para matar outro três. Agora, na mão decisiva, papai jogava mais um três e tio Tom não deixava passar.
-Truco esse três – disse.
Tio Quito fez cara de surpresa. Coçou o queixo, olhou para papai.
-Jogamos errado – comentou.
-Truco! – entusiasmou-se tio Tom.
-Quanto eles têm? – quis saber tio Quito.
Papai contou:
-Com o truco eles fecham a partida.
Tio Quito fez que ia pôr sua carta no baralho, mas voltou a mão.
-Vamos ver? – sugeriu.
-Ainda tem um três rodando – observou papai.
-Vocês vão ou não vão? – perguntou tio Tom, impaciente.
-Cai – ordenou tio Quito.
Tio Tom sorriu e jogou na mesa sua carta, certo da vitória. Era mais que um três, era a espadilha. Tio Quito coçou o queixo outra vez, o olhar desolado. Tio Tom fez menção de puxar os grãos de milho. Foi quando tio Quito deu o pulo da cadeira e gritou, assustando todo mundo.
-Vale seis, ladrão de milho! Vale seis!
Tio Quito era o rei do truco. Podia não ser o melhor jogador, mas era a principal atração do Dia de Reis, quando se comemorava lá em casa o aniversário de casamento dos meus pais. Aprontava tal estardalhaço que a gente nunca sabia se ele tinha ganhado ou perdido: ria, gritava, gesticulava, fazia sinais, piscava, levantava, sentava, e até subia na cadeira.
Tio Quito era o rei do truco e a alegria da meninada. Sempre chegava com balas ou outra guloseima nos bolsos, repetindo vovô, que no trajeto da sua casa à nossa ia deixando balas debaixo da porta de toda casa onde havia criança. Irmão mais velho de papai, tio Quito fazia contraste com ele. Papai era severo, contido, certinho; tio Quito era brincalhão, carinhoso e desbocado; papai era forte, saudável, jogava futebol, tio Quito era miúdo, cego de uma vista e mancava; papai estava sempre sóbrio, tio Quito adorava uma cachacinha. Papai, o mais bem-sucedido dos irmãos, lamentava frustrações pessoais – uma delas envolvendo o próprio tio Quito: cedendo a pressões familiares, papai vendeu barato o lote do Caiçara ao irmão, que não construiu e se desfez do imóvel. Tio Quito, simples balconista, funcionário na loja do sogro, sem casa própria, gozava a vida com humor e alegria. Tinha sempre uma história pra contar.
-Escuta esta aqui – dizia, chamando um dos sobrinhos para sentar do seu lado.  

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