sábado, 8 de junho de 2019

O fim do mundo está a caminho, de verdade

Mais uma vez a lucidez da Eliane Brum.

A potência da primeira geração sem esperança

Os adolescentes que lideram a greve climática encarnam a mais importante adaptação ao planeta em colapso e demonstram ser mais próximos dos povos da floresta do que de seus avós de tradição europeia.

Eliane Brum, El País, 5/6/19

Em maio, encerrei uma palestra sobre a Amazônia e a criação de futuro, na universidade de Harvard, nos Estados Unidos, afirmando que a esperança, assim como o desespero, é um luxo que não temos. Com um planeta superaquecendo, não há tempo para lamentações e para melancolias. Precisamos nos mover, mesmo sem esperança. Assim que terminei, um grande empresário brasileiro fez uma manifestação apaixonada em defesa da esperança e foi aplaudido entusiasticamente por parte da plateia. A esperança, e não a destruição acelerada da Amazônia ou a emergência climática global, foi o assunto do debate que veio a seguir. Alguns entenderam que eu era uma espécie de inimiga da esperança e, portanto, uma inimiga do futuro (deles). A reação é reveladora de um momento em que a novíssima geração, a das crianças e adolescentes, tem enfiado o dedo na cara dos adultos e mandado eles crescerem.
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A questão da esperança apareceu, para mim, enquanto acompanhava a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e a destruição do rio Xingu, na floresta amazônica. Uma – a construção – resultando na outra – a destruição. Vi pessoas que lutaram contra a morte e que viram seus companheiros tombarem a tiros nas lutas do passado pela floresta, mas que só naquele momento sentiam como se houvessem chegado ao fim da história. Belo Monte se erguia violando todas as leis e violando também os corpos dos mais frágeis – o que faz ainda hoje –, num governo do partido que haviam ajudado a fundar. As casas eram destruídas e incendiadas, a floresta queimava, os bichos morriam afogados, em convulsão. O mundo amazônico se transfigurava.
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Lembro que um ano antes, na Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP de 2014, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro disse: “Os índios entendem de fim de mundo porque o mundo deles acabou em 1500”. Sua provocação referia-se ao fato de que, talvez, se tiverem esse desejo, os indígenas possam nos ensinar a viver depois do fim do mundo representado pela emergência climática, porque entendem de fim de mundo, já que o deles acabou com a invasão europeia.
Ao mergulhar no rio de pensamentos outros, entendi que a catástrofe não é o fim, está no meio
A frase impactou a mim e a tantos que lá estavam, mas só fui compreendê-la por completo quando passei a viver na Amazônia e a me expor a outros modos de vida. E outros modos de vida são também outros modos de pensamento. Ao mergulhar nesse rio de pensamentos outros, entendi que a catástrofe não é o fim, está no meio. Entendi isso com o meu corpo, o que faz toda a diferença, ao conviver com pessoas que tinham vivido várias catástrofes, pessoas para as quais o mundo havia se transfigurado várias vezes, e a vida se inventava pela resistência. Mas uma resistência com uma dimensão diferente da que conhecemos a partir da experiência ocidental branca. Uma resistência que não é a do fardo ou a da cruz, a da resignação martirizada, nem a da vingança e a da espada. O riso de desaforo era parte dessa resistência, que Viveiros de Castro chama de “rexistência”: “Os povos indígenas não podem não resistir sob pena de não existir como tais. Seu existir é imanentemente um resistir, o que condenso no neologismo rexistir”.
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Escrevi, meses atrás, na minha coluna no jornal El País de Madri, que hoje a disputa se dá sobre os passados. Do Brexit ao trumpismo e ao bolsonarismo, o debate do presente abandonou o horizonte do futuro para se dedicar a passados que nunca existiram. Caricaturas como Donald Trump e Jair Bolsonaro conseguem tanta adesão (também) porque a dificuldade de imaginar um futuro em que se possa viver alcançou níveis inéditos: pela primeira vez, o amanhã se anuncia como catástrofe. Não como catástrofe possível, como no período da Guerra Fria e da destruição pela bomba atômica. Mas como catástrofe dificilmente evitável, já que o aquecimento de no mínimo 2 graus Celsius da temperatura da Terra é quase certo. Mas isso num modo otimista. Os fatos indicam que estamos nos dirigindo para 3 ou 4 graus, o que terá um impacto absolutamente tremendo.

Clique AQUI para ler a íntegra no El País.