terça-feira, 1 de novembro de 2022

O dia seguinte

(31/10/22) Hoje eu quero falar da democracia. Ao levantar, cedo, olhei a paisagem e tudo estava como em outros dias: a Serra do Curral, majestosa, no fundo, os prédios, as ruas, os carros passando, pessoas andando. No entanto, o dia parecia diferente. O que foi que mudou?

Não é uma mudança objetiva, é subjetiva: nas mentes, na disposição, nas expectativas.

Tudo está diferente nesta segunda-feira 31 de outubro de 2022 porque ontem teve eleição e os brasileiros escolheram, por maioria bem pequena (apenas 2,1 milhões de votos a mais num eleitorado de 156 milhões), destituir o presidente que nos proporcionou o pior quadriênio das nossas vidas e tentava a reeleição.

Não quero fazer poesia nem falar frases feitas. Quero falar da democracia a partir dos seus aspectos subjetivos, mas também objetivos. Quero expressar as inúmeras ideias que me vêm à cabeça hoje e tentar compreender uma realidade que não pode ser compreendia só objetivamente, muito menos com ideias velhas, chavões, ideologias.

A realidade dos brasileiros é dura, sofrida, tensa, e o foi ainda mais nos últimos anos, de forma crescente desde 2014, atingindo níveis insuportáveis no último quadriênio, que incluiu a pandemia. Ontem, porém, como num passe de mágica, mudamos tudo.

É claro que essa mudança não aconteceu, a realidade dura continua aí, mas também é fato que num único dia, num ato, numa decisão da maioria, numa votação, numa eleição democrática, tiramos do governo o presidente e sua turba.

A decisão poderia ter sido outra e quase foi, o presidente poderia ter sido mantido pela maioria, apesar do governo desastroso que fez. Poderia, porque tem a máquina do Estado nas mãos e a usou criminosamente, e esse poder é tão grande que todos os presidentes anteriores foram reeleitos, mas ele não, porque o desastre do seu governo foi muito maior do que o poder da máquina. E então, apesar de toda a pressão do governo, de toda a manipulação criminosa dos recursos públicos e de outra máquina poderosa de crimes, a de produção e disseminação de informações falsas na internet, ainda que por uma pequena margem a maioria escolheu destituir o presidente.

Essa é a mágica da democracia. É preciso entendê-la. Parece uma fantasia roliudiana, ou global, que tudo possa mudar de um dia para outro, que o povo sofredor tenha esse poder de destituir seus governantes numa eleição e eleger outros.

Nesta eleição, principalmente, o contraste ficou maior. Somos governados por um presidente autoritário e estúpido, que passou todo seu mandato desacreditando as eleições, ameaçando dar um golpe militar, atacando os demais poderes e todas as instituições que não se submetem a ele, promovendo a discórdia e incentivando a violência, falando mentiras e disseminando informações falsas, alheio aos problemas dos brasileiros, entregando o governo para ministros incompetentes e inimigos das áreas sob sua responsabilidade. Tudo isso torna ainda mais incrível que tenhamos o poder de mudar essa realidade num único dia, no ato pacífico de votar.

E foi o que aconteceu: os brasileiros compareceram às urnas, votaram, derrotaram o atual presidente e elegeram outro que nos dá esperança de dias melhores.

Imediatamente, o resultado foi proclamado pelas autoridades eleitorais, os representantes dos demais poderes se manifestaram acatando o resultado, o presidente eleito fez seu discurso de vitória, seus simpatizantes ocuparam as ruas em festa, autoridades internacionais e de outras nações o cumprimentaram e um novo período da nossa história começou. Os derrotados puseram o rabo entre as pernas, o golpe ameaçado não veio, o resultado não foi contestado, as forças armadas estão quietas, os civis armados não se rebelaram, o inominável continua calado.

Pode ser que ainda tenhamos surpresas golpistas, mas até agora tudo transcorre dentro da normalidade. Hoje, as notícias já tratam dos preparativos para o novo governo. O único fato destoante, além do silêncio do derrotado, é o protesto motoristas bloqueando estradas, que não é reconhecido pelas lideranças dos caminhoneiros.

A sensação que eu tenho é que a democracia está consolidada entre nós e que a vontade popular é parte decisiva dela, apesar do enorme conflito entre a dura realidade diária do povo e o seu poder nas eleições, apesar também das sucessivas infrações a ela cometidas desde a eleição de 2014.

É preciso entender que democracia é essa. Não é a democracia ideal, não é uma democracia madura, reconhecida e praticada por todos, como a dos EUA, por exemplo. É uma democracia que vai se consolidando, porém, aqui como em quase todos os países, como se um modelo de sucesso fosse se espalhando como o único em todas as nações. Apesar de movimentos autoritários, apesar do fortalecimento de uma nova extrema direita, da qual o atual presidente é o representante no Brasil, movimentos que, aparentemente vão sendo incorporados pela democracia, em vez de destruí-la, como aconteceu há um século.

O golpe de 2016 – cuja origem é a operação larvajato e o cume a prisão do ex-presidente Lula, passando pelo impeachment da presidenta Dilma e o governo antipopular do vice-presidente golpista – me levou a descrer da democracia. Pensei que as rupturas sucessivas não teriam volta sem um conflito maior e que o estado de exceção duraria mais tempo. A eleição do inominável e o inegável fenômeno popular que sua ascensão representou me pareceram a cristalização de uma situação duradoura.

No entanto, a democracia mostrou-se resiliente; começou a se regenerar numa série de atitudes e mudanças dos atores políticos, movidos também por acontecimentos fora do seu controle.

Aliás, a coisa toda parece ter sido um processo que fugiu do controle dos políticos e instituições que comandaram o país desde o fim da ditadura militar. O golpe de 2016 e a ameaça autoritária do governo do inominável não se parecem com o golpe de 1964 e os 21 anos de governos militares.

Políticos (eleitos pelo voto popular ou não – os ministros, desembargadores, juízes, procuradores e outros agentes do poder Judiciário, por exemplo, se comportam como políticos, inclusive transitam entre os poderes) conservadores e reformistas ficaram desorientados diante das multidões nas ruas, das campanhas da grande mídia e dos novos líderes de discurso radical e violento que surgiram. Foram eficazes em destituir e prender os governantes petistas, mas foram incapazes de ocupar seus lugares. Na primeira eleição presidencial, foram fragorosamente derrotados e viram subir ao poder o inominável e sua turba.

O governo caótico e desastroso do inominável acabou rejeitado pelos golpistas, mas conseguiu manter mobilizada grande parte dos seus eleitores e o apoio de empresários descaradamente criminosos.

Embora a situação atual – esse período de oito anos de democracia ameaçada, que parece estar terminando com a derrota eleitoral do inominável – tenha sido deflagrada pela direita e pelo centro e seguido em sucessivos movimentos que culminaram na eleição do inominável, é preciso não isentar a esquerda.

O que se chama de esquerda no Brasil – o campo político liderado pelo PT, cujos governos, entretanto, fizeram pouquíssimo de um programa de esquerda – parece não ter ainda compreensão de que algumas das suas práticas contribuem para enfraquecer e matar a democracia. Entre essas práticas estão ter o mesmo líder durante décadas, formar um único grupo com força muito maior do que outros e permanecer no poder durante sucessivos mandatos. Alternância no poder e pelo menos dois partidos fortes são características de uma democracia duradoura.

Espera-se – e a formação de uma frente ampla na eleição deste ano, incluindo um antigo adversário na vice-presidência, sugere isso – que Lula e o PT tenham aprendido a lição, principalmente Lula, porque seu partido nunca se insurgiu contra ele, ao contrário, o segue cegamente. Na verdade, não foi o PT quem fez aliança com o centro e a direita, foi Lula – embora o presidente eleito mais uma vez seja quem é porque tem milhões de seguidores fieis em todo o Brasil.

Espera-se que Lula faça de fato um governo de união nacional, incorporando inclusive amplas camadas sociais e políticas que aderiram ao bozoísmo nos últimos anos, por força da campanha antipetista e antilulista que a grande mídia, a larvajato e a extrema direita insuflaram.

O Brasil precisa recuperar o Estado, as políticas públicas de meio ambiente, saúde, educação, segurança e em todas as outras áreas; precisa recuperar direitos populares que foram roubados desde o golpe de 2016, empregos, salários, além de otimismo, alegria, fraternidade.

Para essa missão, não há liderança mais adequada do que o Lula, um político da conciliação. Seu grande defeito foi sempre se considerar o centro, não deixar que outras lideranças cresçam e o substituam, não aceitar deixar o poder, não conseguir se privar da adoração de que é alvo por seu séquito e milhões de seguidores. Um presidente conciliador e articulador por excelência, mas também humilde, é disso que os brasileiros precisam agora.

O terrível octênio que nós, brasileiros comuns (eleitores, cujo poder se limita a um voto, de quatro em quatro anos), vivemos desde a reeleição da presidenta Dilma foi também difícil para Lula. Eu aprendi muito nesse período, acho que todos aprendemos. Que o presidente eleito, um ser humano afortunado como poucos, aproveite a chance única lhe que a vida lhe dá, tenha sabedoria para não repetir erros e virtude para tomar decisões certas, é o meu desejo.