sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Sobre o valor do voto, a igualdade e o avanço da democracia

A democracia moderna tem duas variantes, a democracia política e a democracia social (ou democracia liberal e democracia popular). O poder do povo ao qual me referi em outro texto, que se manifesta em um único dia, de quatro em quatro anos, dia que poderia ser chamado de “Dia da Igualdade”, é expressão da democracia política. Um dia, de quatro em quatro anos, todos os brasileiros são iguais, conforme direito que lhes confere a Constituição. Cada um e todos têm direito a um voto, nem um a mais, e expressam sua vontade nas urnas.

Acaba aí a democracia, o direito de escolher Lula ou o bozo, Lula ou Aécio, Lula ou Serra, Lula ou Alckmin, Lula ou FHC, Lula ou Collor… Uma das opções, como se vê, sempre é Lula, desde 1989, exceto quando ele não podia se candidatar, em 2010 e 2018, ou podia, mas a então presidenta, sua apadrinhada, tinha preferência.

Essa é uma vertente da democracia moderna, adotada, de duas formas diferentes, a forma inglesa e a forma francesa, desde o século XVIII.

O que se questiona nela é a igualdade que dura só um dia: de que vale a igualdade formal? De que vale essa democracia? De que vale o voto?

A experiência democrática provoca questionamentos, reflexões, protestos, insubordinação, rebelião. O subalterno colocado na condição momentânea de igualdade sente o gostinho de não o ser; quem a experimenta quer mais, não quer ser ludibriado, quer ser igual permanentemente, quer mais democracia, que democracia de fato.

Vem daí a outra vertende democrática, uma forma de questionamento das limitações da democracia política, a qual tacha de burguesa e formal apenas, porque limita a igualdade ao voto, o qual ainda é restringido, não é universal, e é corrompido, de cabresto, fraudado. Essa vertente, a democracia social, propôs ampliar a igualdade, tornando todos os cidadãos iguais e não só formalmente, perante a lei.

De que adianta o direito ao voto, se os representantes eleitos são políticos ricos, que depois vão defender os interesses da sua classe e não os daqueles que os elegeram? De que vale ser igual perante a lei, se a justiça é controlada pelos ricos e os favorece? De que vale a igualdade formal, se na vida diária somos desiguais, a grande maioria vive na pobreza ou na miséria, sem acesso às riquezas que a sociedade produz?

A democracia social exige mais do que a igualdade formal, exige a igualdade de fato.

A reação contra a igualdade formal é compreensível, mas não totalmente justa, porque, como disse no começo deste texto, o poder do sufrágio universal é real. Nossa escolha, a escolha dos pobres, pretos e trabalhadores, que somos a imensa maioria dos brasileiros, destitui um governo e elege outro. Num dia, num voto, no apertar de uma tecla, muda o poder do país. É uma feito e tanto.

No entanto, não o valorizamos. Por isso insisto em que valorizar o voto deve ser uma campanha permanente da democracia e todos os democratas devem se dedicar a ela. Devem incutir na cabeça de cada brasileiro que o seu voto é um bem tão preciso quanto seu dinheiro, sua casa, seu emprego, sua profissão, sua convicção religiosa, suas relações familiares e tudo mais que ele valoriza, que considera parte inerente da sua personalidade. Ninguém deve vendê-lo, menosprezá-lo ou se abster de exercê-lo. Se o cidadão não tem igualdade em outras situações e momentos, pelo menos essa ele precisa valorizar e fazer valer.

O próprio fato de a igualdade durar só um dia e de a democracia se limitar ao sufrágio universal contribui para desvalorizar o voto. O pobre acaba por avaliar que seu voto é inútil, porque sua vida não muda. A manipulação do sistema político pelos políticos eleitos pelos pobres e corrompidos pelos ricos contribui para desacreditá-lo, o que é mais um fator a favorecer o poder dos ricos: se os pobres não valorizam seu voto, se não fiscalizam seus representantes, se até mesmo deixam de votar, os ricos podem exercer livremente seu poder e sua corrupção impune.

Não foi à toa que o inominável fez campanha cerrada contra o sistema eleitoral, para desacreditar o único mecanismo pelo qual o povo exerce seu direito à igualdade.

Como se vê, a questão é complexa. Valorizar o voto, entretanto, é afirmar a igualdade e deve ser uma política permanente da democracia.

Uma questão que se impõe é como usar a igualdade do voto para promover a igualdade social, como usar a democracia formal para promover a democracia social.

Não há dúvida que o voto é um meio para isso, não há dúvida de que a eleição pode ser um instrumento de mudança. Por que os democratas, os políticos e os partidos políticos usam tão pouco ou tão mal esse instrumento?

É preciso conhecer a história do sufrágio universal para compreender a democracia. É preciso entender que a sociedade humana muda permanentemente, evolui, se transforma. Embora a ideologia expresse formas cristalizadas, a democracia contemporânea não é igual a democracia de um século atrás ou mais. Por que então não afirmamos essa ideia? Por que a ideologia contemporânea não afirma a democracia como valor, acima de todos os outros? Por que não a concebe como um sistema em permanente evolução?

Eu diria que isso até vem acontecendo, ainda que de forma tímida. Basta pensar em como um império econômico das comunicações, como a Globo, se refere à democracia como valor ao noticiar acontecimentos em que qualquer parte do mundo. Regimes políticos de esquerda são frequentemente criticados não por serem de esquerda, socialistas ou comunistas, mas por serem autoritários, antidemocráticos.

O comunismo é um inimigo mortal não por ser anticapitalista, mas por ser totalitário e abolir a democracia. Acontece que o comunismo é um inimigo teórico, porque não existe e nunca existiu em parte alguma; foi uma ideia, um projeto político, formulado a partir de uma teoria da história.

A democracia é um valor defendido, também em teoria, por todos os poderosos brasileiros. Indo mais longe, a própria ditadura militar dominou o país durante 21 anos afirmando defender a democracia da ameaça comunista – assim como hoje, pateticamente, o governo do inominável repete essa discurso.

Em outras palavras: limitada ou inexistente mesmo, a democracia se tornou uma ideologia contemporânea e pressupõe a igualdade, embora o mundo democrático seja completamente desigual – igualdade não é um valor que ganhou o mesmo status ideológico da democracia. É preciso entender, portanto, o que consideramos democracia hoje.

Há dois entendimentos básicos de democracia, essa democracia política, liberal. Um deles é que já citei: democracia é votar – e isso não é pouco, principalmente quando a eleição é livre, universal e eficiente, como acontece no Brasil, por meio das urnas eletrônicas.

O outro entendimento de democracia se confunde com liberdade: liberdade de ir e vir, liberdade de expressão, liberdade de fazer o que quiser da própria vida e do próprio corpo. Há outras liberdades, mas são essas que os indivíduos contemporâneos defendem de forma intransigente.

É a isso, a essas duas noções de democracia, que as pessoas comuns se referem quando reagem para defender seus direitos, ao sentirem tolhida a sua liberdade: “Não estamos numa democracia?”, costumam argumentar.

Há também uma outra noção de democracia, uma espécie de sentimento geral, que no entanto fica incubado na maioria, por força de um passado que o nega. Me refiro à ideia de somos todos iguais perante a lei.

Todos sabemos disso, mas é frequente que não sejamos capazes de exigir o cumprimento da lei, a observância do nosso direito, porque a democracia na qual vivemos educa pobres, pretos e trabalhadores para sermos subalternos aos ricos e poderosos. “Você sabe com quem está falando?” é a frase que expressa isso com clareza.

Essa noção de democracia, a da igualdade perante a lei, é exteriorizada por poucos, tachados de “petulantes”. Ela é parte da democracia liberal, que pressupõe a igualdade formal, segundo a qual somos todos os iguais e o mesmo tratamento deve ser dado a todos. Formalmente, todos temos os mesmos direitos.

Não vai muito além disso e nem isso de fato é respeitado no Brasil. Todos sabemos que a polícia, que é a corporificação mais presente da lei entre nós, trata de formas diferentes ricos e pobres, brancos e pretos, moradores de “bairros nobres” e favelados. O atual presidente é representante de uma ideologia policial que afirma que “bandido bom é bandido morto”, sendo que “bandido” no Brasil é sinônimo de “pobre”, assim como “pobre” é sinônimo de “preto”. A vida de um preto não vale nada, nunca valeu, desde que seus ancestrais foram trazidos da África como escravos.

Assim, defender a democracia, a democracia formal, a igualdade formal, é defender que preto tem que receber tratamento igual ao do branco. Que um pobre vale o mesmo que um rico. Que um trabalhador vale o mesmo que um empresário.

Mais uma vez, como no caso do voto, podemos notar que a democracia liberal e a igualdade formal não são pouca coisa, se de fato nós a valorizamos e exigimos seu cumprimento, se as instituições que zelam por ela funcionam de fato, como é o caso exemplar da justiça eleitoral brasileira. Ou o SUS. Ou o ensino público universal gratuito. Não à toa, como se vê, essas instituições foram atacadas comn vistas à sua destruição pelo presidente antidemocrata em fim de mandato.

Em pleno século XXI a democracia formal ainda não é realidade no Brasil. Em 2022 – e mais hoje do que há quatro anos, porque retrocedemos desde o golpe de 2016 e aceleradamente sob o desgoverno do inominável –, a vida de um preto vale menos do que a vida de um branco, pobres não têm os direitos dos ricos, trabalhadores sofrem assédio para votar no candidato do patrão.

O que isso nos mostra? Que a democracia é uma ideologia, que é difundida e venerada como valor, mas isso não significa que funcione na prática – na prática, a teoria é outra, diz uma velha máxima brasileira.

As desigualdades nos jogam na área de influência do PT e tendem a reduzir as posições políticas a dois grupos antagônicos. Ou se é um ou se é outro. A simplificação é fácil e perigosa. E inútil, porque não é escolher entre um grupo e outro que importa. O que importa é, por assim dizer, “ocupar a democracia”, transformá-la de um sistema formal num sistema real.

É preciso difundir a ideologia da democracia, comprometer com ela todos os cidadãos e todas as instituições, identificá-la como o valor simples e consensual da igualdade que é aceito nas eleições, no sufrágio universal.

Valorizar o voto é um primeiro passo: se todos valorizamos o nosso voto como valorizamos a nossa própria dignidade, vamos compreender o significado da igualdade e vamos defendê-la em todas as situações, vamos compreender que ela precisa ser estendida, ampliada, que não existe democracia sem igualdade.

A democracia, com seu princípio de igualdade, é o valor fundamental da política, no entanto ele foi e continua sendo confundido ainda hoje por ideologias que tergiversam sobre essa obviedade.

A primeira delas é, como vimos, a que a reduz ao voto e trata de corrompê-lo, seja por sua desvalorização, seja por sua limitação a parcelas da sociedade.

Nesse último aspecto avançamos enormemente e é preciso ressaltar isso, valorizar o avanço. O voto já foi um privilégio só de homens brancos, de homens brancos adultos com mais de 21 anos, de homens brancos adultos com mais 21 anos e renda superior a X, e por aí vai. A evolução histórica universalizou o voto de tal forma que hoje, no Brasil, votam todos os homens e mulheres, independentemente de renda e cor da pele ou qualquer outra condição, salvo algumas restrições – presidiários, aqueles que não se registraram na Justiça Eleitoral, menores de 16 anos; ao jovens com idade entre 16 e 18 anos, idosos com mais de 70 e analfabetos o voto é facultativo.

Tirar do eleitor a consciência do valor do seu voto e a motivação de votar é certamente a forma mais eficaz de enfraquecer a democracia e favorecer os ricos (e homens, e brancos, e poderosos – que, no fim, são os mesmos). É uma das formas tradicionais de a direita fazer política. Não é a única, porém. Outra forma de debilitar a democracia e o sufrágio universavel veio e vem ainda da esquerda, da ideologia de tradição marxista-leninista-stalinista.

Por ela, a democracia liberal seria a forma de dominação burguesa e nela a igualdade seria sempre formal e impossível na prática da sociedade capitalista. A igualdade verdadeira só existiria na sociedade socialista, esta sim uma democracia de fato, implatada pela revolução operária.

A ideia de democracia socialista acabou inseparável das ideias de sovietes e revolução operária, conforme aconteceu na Rússia, em 1917. A democracia liberal ou burguesa, diferentemente, está ligada ao voto universal, ao poder exercido por representantes, ao parlamento, aos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – e ao equilíbrio entre estes.

A questão é ideológica. O marxismo parte da concepção da história como luta de classes e do socialismo como sistema superior e sucessor do capitalismo. Considera que a organização política é resultado da organização econômica, que a desigualdade vem da divisão de classes e da propriedade privada dos meios de produção. Seria bobagem, portanto, reformar a sociedade capitalista, e inútil buscar a igualdade numa sociedade que gera continuamente a desigualdade. Buscaar igualdade e democracia na sociedade capitalista seria como enxugar gelo.

É uma ideologia, e seria razoável, até pareceu ser durante algum tempo, se sua teoria da história se confirmasse. Acontece que a revolução socialista não veio, o proletariado não mostrou ser a nova classe revolucionária e o socialismo não substituiu o capitalismo como sistema. A Rússia abandonou o “socialismo real” e a China, é verdade, segue firme com seu comunismo que de fato é um capitalismo de Estado.

Tudo isso não teria importância, a não ser teórica, acadêmica, não fosse a influência dessa ideologia sobre a prática política dos adeptos da democracia, isto é, aqueles que querem fazer a sociedade progredir, se tornar melhor, mais igualitária, mais democrática. É inegável que essa influência colaborou para que nos empenhássemos menos do que deveríamos na valorização, no aprimoramento e na ampliação da democracia – sem adjetivo.