quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

O mundo pode ser diferente

Hábitos saudáveis não são nenhuma coisa extraordinária, são apenas práticas guiadas pela razão e pelo conhecimento científico. Não tê-los é que é extraordinário.

Por que – para ficar na alimentação – comemos farinha de trigo modificado, carnes com remédios, vegetais com agrotóxicos, derivados do leite de vaca com antibióticos, ultraprocessados cheios de venenos? Por que comemos tanto e tão mal e nos tornamos obesos, a ponto de a obesidade ter se tornado uma epidemia e causa da maior parte das doenças? Por que bebemos bebidas alcoólicas que fazem mal e viciam e provocam acidentes de trânsito e outras violências? Por que enfim temos práticas que sabidamente fazem mal à nossa saúde e geram uma sociedade doente?

Não é porque o conhecimento científico e a razão nos ensinam a ser assim. Tampouco é, na minha opinião, porque somos maus ou uma espécie predestinada à autodestruição. Podemos ser tão saudáveis e bons quanto os indígenas deste subcontinente. Ou os gregos antigos. Ou muitas outras civilizações antigas extintas ou quase. Podemos de fato ser melhores do que eles, porque hoje conhecemos muito mais. Basta nos guiarmos pela razão e pelo conhecimento científico.

A razão de nos destruirmos numa vida doente é que nos tornamos escravos do capital – na alimentação, na saúde, na medicina, no estilo de vida, em todos os nossos hábitos.

A civilização na qual vivemos e que criou as maravilhas cotidianas que nos elevaram de animais a espécie poderosa, às quais nos acostumamos sem nos espantarmos e reverenciarmos como seria de esperar que fizéssemos, essa civilização é movida por uma única motivação: ganhar dinheiro, e uma invenção superior a todas as outras: o capital.

O capital nada mais é do que o dinheiro empregado para produzir mais dinheiro. O dinheiro que aumenta sempre. O dinheiro que no final do ciclo da sua ação gerou lucro. Dinheiro que engorda, dinheiro obeso. Câncer que cresce destruindo o ambiente em que vive.

As analogias com o câncer e com a obesidade são pertinentes. O capital é dinheiro que cresce descontroladamente, que só existe crescendo, e para isso precisa destruir tudo ao seu redor, tudo que é saudável. O capital é um dinheiro gordo, inchado, obeso, que consome mais do que pode gastar, do que precisa.

Não existe capital sem crescimento contínuo. Dinheiro sem crescimento contínuo é apenas dinheiro, um meio de troca, o equivalente geral de valor, criado em algum momento da história para facilitar trocas de produtos entre pessoas, grupos e povos que produziam mercadorias diferentes. Muito útil. Em vez carregar um saco de arroz para trocar por outro de feijão, o Homo sapiens passou a transportar um saquinho de dinheiro, com o qual podia comprar tudo de que precisasse.

Tudo que o Homo sapiens inventa sai do seu controle. Uma vez inventado, o dinheiro ganhou uma nova característica e criou um novo tipo de indivíduo. Ao contrário do arroz ou do feijão, o dinheiro pode ser acumulado sem perda e aqueles que na troca dos seus produtos por outros tinham sobras de dinheiro podiam guardá-lo. Isso equivale a enriquecer, pois podiam usar o dinheiro para adquirir coisas novas ou produzir ainda mais e na rodada seguinte ter sobras de dinheiro ainda maiores. E podiam também emprestá-lo a quem precisasse, recebendo em troca, depois de um prazo, o dinheiro que emprestaram mais ainda, os juros. Criou-se assim o banqueiro, o indivíduo que vive de emprestar dinheiro e receber mais depois, o indivíduo que não precisa produzir porque o dinheiro produz para ele, o indivíduo que não precisa trabalhar porque o dinheiro trabalha por ele.

Curiosamente, o indivíduo que não trabalha nem produz tornou-se o mais rico da sociedade, graças ao dinheiro. Não ao dinheiro meio de troca, mas ao dinheiro emprestado e recebido de volta com juros, maior, mais gordo, o dinheiro com lucro. Estava também inventado o capital. O banqueiro é o capitalista na essência: o indivíduo mais rico e mais poderoso da sociedade porque controla o dinheiro que move a economia, do qual todos dependem, em busca do qual todos vivem, ao qual todos servem, porque não podem viver sem ele.

Na sociedade do capital, tudo virou mercadoria, inclusive os indivíduos, os quais, na sua imensa maioria, nada têm para vender, a não ser a si mesmos, nas formas de trabalho, força física, tempo, inteligência. São os trabalhadores.

Na sociedade do capital, tudo virou mercadoria e só pode ser adquirido com dinheiro, portanto quem detém o dinheiro detém a riqueza e o poder. Aos demais, resta fazer o que for preciso, vendendo-se a si mesmos, para ganhar dinheiro e, dessa forma, comprar as mercadorias de que precisam. Quanto mais dinheiro ganharem, mais poderão comprar, mais luxo, mais conforto, mais necessidades supridas.

Grande parte só consegue ganhar tão pouco que sequer supre suas necessidades elementares de alimentação e moradia. Isso não importa, porém, pois o objetivo do sistema não é suprir as necessidades dos indivíduos que fazem parte dele – o objetivo é ganhar dinheiro. Todos aprendem isso desde que nascem e se lançam a esse empreendimento, com resultados diversos. O sonho de todo indivíduo é ser capitalista, é ter dinheiro e não precisar trabalhar mais, enriquecer, acumular, desfrutar das maravilhas cada vez mais amplas e sofisticadas e também mais caras que o crescimento contínuo do capitalismo oferece e podem ser compradas com dinheiro.

O capital, a motivação de ganhar dinheiro, de realizar suas necessidades e desejos enriquecendo, transforma tudo. O objetivo dos indivíduos deixa de ser alimentarem-se, passa a ser comerem comida industrializada, comida pronta, comida fácil de preparar, comida gostosa, com sabores realçados, comida que vicia, comida sofisticada, comida estrangeira, comida de restaurantes, enfim, comidas que representam riqueza também e fazem com que os indivíduos se sintam parte da sociedade da riqueza, da sociedade do dinheiro, da sociedade do capital. Na civilização do capital, o indivíduo não come alimentos, como dinheiro, a alimentação torna-se um ato capitalista, como todos os outros, porque a essência da nossa vida é essa, é para isso que vivemos, é a isso que nos dedicamos, é isso que nos motiva: ganhar dinheiro.

Na sociedade do capital, na sociedade do dinheiro, na sociedade das mercadorias, tudo foi transformado em propriedade privada, tudo foi apropriado pelos capitalistas, no processo contínuo de produção de mais riquezas e de concentração do dinheiro nas mãos dos banqueiros, dinheiro que pode comprar as mercadorias produzidas, mas também os meios de produzir mercadorias. Assim, a maioria dos indivíduos, que não tem como produzir e suprir suas necessidades, é obrigada a vender seu trabalho para sobreviver. Pelo processo de concentração de riquezas, na forma de capital, na forma de dinheiro que cresce continuamente, os banqueiros, aqueles que não trabalham nem produzem porque o dinheiro trabalha e produz para eles, tornam-se não apenas donos dos meios criados pelos indivíduos para produzir, mas também da terra, de toda a Terra, da Natureza, que não foi criada pelo Hs, do planeta que já estava aqui quando surgimos, do qual somos na verdade filhos, que é de fato nosso dono.

A espécie humana, que nasceu da Natureza, apropria-se dela e de tudo que ela contém: as outras espécies animais, todas as espécies vegetais, o solo, o subsolo, a água, o ar, tudo. Não a espécie humana inteira, porém, como vimos, mas parte dela, uma minoria que se tornou também proprietária das riquezas produzidas pelos indivíduos, dona do capital, dona do dinheiro.

Para que os indivíduos produzam as riquezas das quais os capitalistas se apropriam, estes precisam que a Natureza também seja transformada em mercadoria, na forma de “matéria-prima”. E assim os capitalistas tornam-se donos da Natureza, da Terra.

Nessa civilização do capital que cresce continuamente, porque é movida pelo capital, que só existe crescendo continuamente, é considerado normal que a Natureza tenha donos, os capitalistas, e que um indivíduo não tenha meios naturais de sobreviver e por isso venda seu trabalho. Proprietários da Terra e das riquezas produzidas pela espécie humana, os capitalistas transformaram todos os outros indivíduos em seus escravos sem precisarem comprá-los, sem precisarem obrigá-los a trabalhar. Todos trabalham por iniciativa própria para seus senhores porque querem ganhar dinheiro para comprar as riquezas que eles mesmos produziram mas foram apropriadas pelos capitalistas.

Os trabalhadores não querem apenas sobreviver, não querem apenas se alimentar e morar, não querem apenas viver coletivamente, como indivíduos de uma espécie como as outras da Natureza, como os povos antigos, como os indígenas da Amazônia. Os trabalhadores escravos voluntários dos capitalistas querem enriquecer, querem ganhar dinheiro, pois acreditam que o dinheiro lhes possibilitará adquirir tudo que desejam, tudo que seus senhores possuem. No capitalismo, os trabalhadores querem ser capitalistas. No capitalismo, todos querem ser capitalistas.

Não existe capital sem crescimento contínuo e não existe capitalismo sem adesão dos indivíduos, de cada indivíduo em particular e de toda a sociedade. O capitalismo não existe por imposição, mas porque aderimos a ele. Somos todos capitalistas, até mesmo os mais ardorosos socialistas, os mais fiéis comunistas. Olhamos para a China e vemos comunistas participando felizes do capitalismo.

O capitalismo só existe porque, nele, todos os indivíduos querem ser capitalistas, porque ele convence os indivíduos, desde que nascem, que a motivação da vida é enriquecer e que o meio para isso é o dinheiro, ganhar dinheiro, seja como for, vendendo seu trabalho ou escravizando voluntariamente trabalhadores.

Esse mecanismo pelo qual os capitalistas convencem todos os indivíduos desde que nascem a se tornaram seus escravos voluntários e se dedicarem a ganhar dinheiro é a ideologia.

Ideologia não é apenas ideia, é ideia transformada em fantasia, em crença, em desejo, em instituição. São inúmeras as instituições que expressam ideologia. A propriedade privada é uma ideologia, a polícia é uma ideologia, a escola é uma ideologia, o trabalho é uma ideologia, o progresso é uma ideologia, o governo é uma ideologia, até a ciência é uma ideologia. Deus é uma ideologia, a ideologia suprema pregada pelas religiões, a ideologia poderosa que submete os indivíduos, que ajudou a organizar muitas civilizações e que os capitalistas souberam usar para submeter seus escravos voluntários. O trabalhador se torna escravo voluntário do capitalista porque Deus quer que ele ganhe dinheiro e prospere. Prosperidade é progresso. Progresso é a ideologia que justifica o crescimento contínuo do capital. A ideologia faz os indivíduos acreditarem no sistema, lhes dá motivação para trabalhar e serem escravos voluntários do capital.

Nessa civilização que caminha para o caos e já vive a barbárie, uma vez que só existe crescendo continuamente, porque é movida pelo capital, que só existe aumentando, que produz cada vez mais riquezas, mas para isso precisa de mais “matéria-prima”, ou seja, destruir a Natureza, que é finita, é que a Terra, que nos abriga e da qual viemos, nessa civilização o Hs tornou-se ele próprio o Deus que inventou, todo poderoso, mas, ao contrário do deus imaginado, não tem o poder de criar a Terra, a Natureza, e a vida que é parte dela.

O Homo sapiens, ou homo capitalistens (?), é uma espécie ideológica, porque, de fato, quem impulsiona o capitalismo e desfruta das riquezas produzidas por ele são os capitalistas, uma minoria, mas todos os indivíduos, a imensa maioria, acreditam na ideia do enriquecimento e fazem o sistema funcionar. A autodestruição iminente torna óbvia uma verdade que podia ser compreendida desde sempre, porém: embora sejam proprietários do capital e os façam trabalhar para si, os capitalistas são igualmente escravos dele, pois não é o capital que faz o que eles querem, são eles que fazem o que o capital manda. Dedicando-se a ganhar cada vez mais, submetendo-se ao lucro, os capitalistas não controlam o capital, são seus joguetes. Outra civilização só poderá vir quando os capitalistas deixarem de ser escravos do capital e os trabalhadores deixarem de ser escravos voluntários dos capitalistas – quando, enfim, o Hs, por vontade própria, deixar de ser escravo do capital e se converter em seu senhor.