segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

'Junk press': o jornalismo sob encomenda, de tese e de denúncia que reina hoje

Recebo na portaria do prédio uma dessas revistas distribuídas gratuitamente. Já que ninguém as compra mais, a velha "grande" imprensa agora distribui suas publicações de graça, em domicílio ou nos sinais. Isso vale para esta revista que ostenta na capa preço de venda em banca, mas vale também para Veja, "a maior revista do país", que continua sendo entregue de graça para assinantes que não renovam a assinatura. O interesse dessas publicações não é que o leitor as compre ou assine, é só manter uma tiragem fictícia, para, dessa forma, venderem anúncios caríssimos -- inclusive, talvez principalmente, para o governo federal, governos estaduais, prefeituras e estatais.

Como sempre, a revista que recebo na portaria vem com um encarte "especial" cuja manchete é "Um gestor no governo". O "gestor" é o governador de saída, filho prematuro dos seus antecessores, que ficou só sete meses e nos dois últimos vem fazendo tudo que certamente esperavam dele, caso ocorresse o desastre eleitoral tucano, como de fato houve: adiantar licitações, prorrogar contratos, gastar todo o dinheiro disponível, aumentar gastos, fazer dívidas e tudo mais que possa ajudar os amigos do governo que sai e pôr em maus lençóis o governo que entra. É este o "gestor.

Mais uma vez pergunte-se a essa imprensa, para testar sua honestidade: se o governador encomiado não desse à revista centenas de milhares de reais em anúncios e patrocínios (o leitor que se assusta com os números de corrupção difundidos pela imprensa ficaria bestificado com os preços dos anúncios), ele receberia os mesmos elogios?

É patético ver os "gestores" durante 12 anos louvados, finalmente derrotados e agora largamente desmascarados na sua incompetência administrativa figurarem sorridentes nas páginas da revista, repetindo todas as mentiras que disseram ano após ano e justificando "dificuldades" com causas externas.

Este -- não ser confiável -- é um dos motivos pelos quais a "grande" imprensa não tem mais leitores. Há outros: os modelos de "jornalismo" que hoje se praticam. São basicamente três, mas nenhum deles é o que os estudantes aprendem nas faculdades.

Dos mestres experientes e bons profissionais, os aspirantes a jornalistas aprendem que jornalismo é o que alguém não quer ver publicado, é que o incomoda o poder, é o que interessa o leitor.

Jornalismo não é feito para agradar o entrevistado, e muitas vezes vai desagradá-lo; é feito para informar o leitor e não para enganá-lo.

O patrão do jornalista é o leitor, que é quem, em última instância, paga seu salário, consumindo o que o jornalista escreve.

O patrão paga o salário, o anunciante paga a publicidade, mas se não tiver leitor, não há publicidade e não há dinheiro para pagar salário.

Logo, o respeito ao leitor é o ponto de partida do jornalista, é para informar o leitor corretamente que ele trabalha; só entregando a informação correta é que o jornalista conquista a confiança do leitor.

Se o patrão não entende isso, está no negócio errado.

Se o anunciante e o governante não entendem isso, não merecem respeito, e se o patrão se curva às pressões de anunciantes e governantes, também não.

É simples, é o que todo jornalista sabe, é o que se ensina nas faculdades de jornalismo, como se ensina a Constituição nas escolas de direito e anatomia nas escolas de medicina.

No entanto, é o que se pratica cada vez menos, a ponto de novas gerações de jornalistas não sentirem o menor escrúpulo em moldar seu trabalho pelos três modelos que prevalecem hoje em dia e que descrevo a seguir.

O primeiro modelo é informe "especial", este mesmo da revista citada.

Não é novo, nos melhores momentos do JB, o grande jornal carioca publicava matérias pagas pelo governo de Minas. Essas matérias, no entanto, eram cercadas de pudor. Primeiro, porque não passavam pela redação, mas pelo departamento comercial -- era o comercial quem acertava o negócio e contratava os jornalistas. Estes, geralmente não eram da redação, mas quando eram recebiam como um frila e não punham seus nomes nas matérias. As matérias eram identificadas como informe publicitário, ainda que fossem muito mais informativas e tecnicamente bem feitas; as fontes governamentais respeitavam os profissionais. A bem da verdade, eram matérias corretas, com a diferença de que sua publicação estava garantida antecipadamente, independentemente da qualidade da notícia, e nenhum jornalista contratado para produzi-las saía buscando "o outro lado", para confirmar as informações recebidas. Várias vezes no entanto escrevi, para o JB, como frila e sem me envergonhar, matérias "a favor" sobre assuntos relevantes que o governo de Minas ou outro anunciante queria publicar.

Hoje, esses informes publicitários se tornaram a regra e as matérias saem assinadas! Profissionais assinam embaixo do texto encomendado! Publicações inteiras são feitas assim, sem informar o leitor de que se trata de matéria paga, e tecnicamente são muito piores. Rasgam elogios pessoais, como nomear um governador tampão de "gestor", ignorando todas as denúncias contra ele por seus atos de fim de governo. No entanto, esse "jornalismo" está em toda parte. 

O segundo modelo é o do jornalismo de tese.

Ele tem variações, mas consiste basicamente em ter já a matéria pronta na pauta. A tese pode ser a favor ou contra, pode ser sobre assunto relevante ou bobagem, pode ser local ou nacional. Não importa, o que importa é que o pauteiro "sacou" uma ideia que parece nova e que atrai os leitores da publicação -- todas as publicações, hoje, acham que conhecem o seu "público" e são feitas para ele, na maior parte a classe média alta. Outra coisa importante: a matéria precisa dar boas fotos. Satisfeitas estas condições, a pauta está aprovada. Junto com a pauta, vem já o título e o lide -- e as fotos sugeridas. Cabe ao repórter basicamente encontrar personagens que confirmem a tese, com histórias, depoimentos, "aspas" e boas fotos. Assim, se a boa história é de uma personagem que "não dá boa foto", ela perde pontos; será preciso "produzir" a foto ou conseguir outra personagem.

Com esta fórmula pode-se produzir qualquer matéria, pode-se até mesmo produzir matérias antagônicas. Note-se que a fórmula não é ruim em si, e realmente foi um achado, quando surgiu, lá atrás, nos anos 80. A sensibilidade de bons jornalistas possibilitou a produção de belas matérias que renovaram o jornalismo factual. Nasceu como jornalismo de revista, provavelmente na Revista de Domingo, do JB, ou na Veja, e ganhou fôlego nas publicações da Abril; nas Vejinhas, espalhou-se como praga pelo país. No jornalismo diário, foi também o JB que lhe deu espaço.

O diabo é que o que era uma pérola tornou-se uma fórmula repetida mecanicamente por profissionais menos competentes e principalmente menos escrupulosos. A banalização generalizada do modelo pode hoje ser vista amplamente, como uma mistura de ficção com textos publicitários, que prolifera como aguapés nas águas sujas da imprensa contemporânea, nem só "grande".

O terceiro modelo é o sensacionalismo.

Também não é novo, talvez seja mesmo o mais antigo de todos, o jornalismo que quer vender exemplares a custa de aberrações. No Brasil, no entanto, ele ganhou caráter político nas últimas décadas e desde 2003 configura-se principalmente como jornalismo de oposição ao governo do PT. Há casos célebres, criminosos, como o da Escola Base, que prenunciavam o esgoto que viria a seguir, mas o marco é a eleição de 1989, a primeira direta, na qual a grande imprensa (então ainda relativamente grande) conseguiu fabricar um candidato e elegê-lo, para derrotar Brizola e Lula. Logo em seguida, fabricou o impeachment do presidente. Elegendo e depondo um presidente, provou o gosto do sangue e não parou mais de sugá-lo. Nos doze últimos anos transformou o vampirismo em vício tresloucado; é só de sangue que essa imprensa vive, criando um novo escândalo a cada dia, uma nova denúncia, um novo sensacionalismo. Veja, que cunhou um dia a expressão "caçador de marajás" e três anos depois garantia que "Pedro Collor conta tudo", sobre o irmão presidente, lançando irmão contra irmão, em capas históricas -- no mau sentido -- do jornalismo brasileiro, destaca-se como grande líder desse jornalismo de esgoto, mas outros veículos a acompanham de perto, em especial um que é distribuído nos sinais, e que faz o papel de guerrilheiro audacioso e ativo, uma vez que vai direto ao leitor, de graça, não espera que ele o procure.

O sensacionalismo antes episódico (basta lembrar da morte de Elis Regina: "A tragédia da cocaína"; e da doença de Cazuza: "Uma vítima da aids agoniza em praça pública") tornou-se regra. Quando vemos outra vez a capa da Veja em que Pedro Collor denuncia o irmão, quando pensamos no que aconteceu depois (seu câncer fulminante no cérebro, as histórias da traição da sua mulher com o irmão, da morte de PC Farias), impressiona a sequências de fatos que adoeceu a política brasileira, mas impressiona ainda mais, do ponto de vista do jornalismo, que a imprensa tenha colaborado muito para a corrupção e muito pouco para combatê-la. Desde 1989, o jornalismo brasileiro é cada vez mais uma planta que se alimenta do esgoto -- que não quer eliminá-lo, mas ao contrário, vê-lo crescer, porque depende dele. Esgoto verdadeiro ou fictício, não sabemos mais diante das informações distorcidas, aumentadas, falsificadas, inventadas até -- nunca é demais lembrar que Collor foi absolvido pelo STF, assim como não é demais lembrar que o PT, as esquerdas, os estudantes e movimentos populares deram apoio ao impeachment promovendo manifestações públicas. Também não é demais ressaltar que o argumento da "falta de provas" que inocentou Collor foi desconsiderado para inocentar José Dirceu e demais petistas.

A imprensa de sarjeta inaugurada em 1989, com fins políticos, contaminou a sociedade brasileira, envenenou a opinião pública, disseminou o desmando no judiciário, a ponto de juízes agora prenderem agentes de trânsito e funcionários de companhias aéreas que cumprem suas obrigações. Se o reconhecimento mundial do governo e do presidente Lula elevou a autoestima do povo brasileiro, esse falso jornalismo esforça-se diariamente para que nos vejamos e nos tornemos muito piores do que somos.

Com um jornalismo assim é compreensível que cada vez menos brasileiros se informem por jornais, revista e televisões. Que leitor inteligente quer se envenenar dia após dia consumindo, digamos, junk press?

O que esses três modelos predominantes mostram é como o jornalismo, uma atividade tão simples que a bem da verdade dispensa quatro anos de formação técnica, embora exija formação cultural e ética tão longa ou maior; atividade que já foi exaltada como a principal porta do povo para a cultura, como vigilante do poder, guardiã da democracia e quarto poder, o velho e bom jornalismo praticamente inexiste hoje na chamada de grande imprensa. Foi esquecido e substituído por outra coisa, bem diferente e que no entanto continua sendo chamada por esse nome.

O velho e bom jornalismo sobrevive em algumas publicações e principalmente na internet, pois foi para ela que migraram os melhores jornalistas, exilados da velha imprensa, e é nela que se encontram novas condições de se praticar essa ideia simples de informar o leitor sobre o que interessa a ele e não a outras sempre obscuras, ricas e poderosas personagens desse universo que se convencionou chamar de mídia.