quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Há um ano

PS: Em um ano de governo do capitão, o autoritarismo militar não é a pior das suas características, as piores são a imposição do fundamentalismo evangélico e principalmente a política neoliberal de destruição do Estado, que está tornando o Brasil uma "ex-nação", na expressão do Ciro Gomes, de longe o político mais lúcido que o país tem. Outro aspecto da análise é que o poder da comunicação concentrada em poucas mãos mudou de figura, com um governo que usa a internet, as redes sociais, um exército de robôs e notícias falsas para se comunicar, ao mesmo tempo que ataca a imprensa de todas formas possíveis, tanto jornalistas quanto empresas, que não gostam dele e o criticam, mas apoiam sem pudor sua agenda econômica neoliberal. O que se segue foi escrito há um ano.  


O golpe de 2016 e a volta dos militares torna-se ainda pior porque nos pegou desprevenidos, iludidos com a democracia que durou 31 anos (1985-2016) e com os impressionantes resultados sociais e econômicos da Era Lula (2003-2010). O que vem por aí – um governo militar autoritário eleito pelo voto popular – pode ser pior, em alguns aspectos, do que a ditadura de 1964-1985.
Quase tudo, porém, foi previsto e ignorado, porque nos iludíamos. O próprio provável presidente, um capitão da reserva, que tem um general da reserva como vice, uma legião de militares o apoiando e vários generais cotados para ministros [e as milícias, o crime organizado, multinacionais do petróleo, da indústria armamentista etc., o governo americano], é um exemplo. A democracia não fez o ajuste de contas com a ditadura, deixou o inimigo sobreviver enfraquecido, fingindo que não oferecia mais perigo, e agora, no meio de uma crise econômica e política que golpeou a democracia, ele ressurge, revigorado com o sangue do povo desesperado.
Não era de se esperar que o governo Sarney ajustasse contas com a ditadura, muito menos o governo Collor; esperava-se que os governos tucanos o fizessem, mas nem mesmo os governos do PT, mais à esquerda, foram capazes disso – de punir os torturadores, jogar o autoritarismo na lata de lixo da História e reformar as Forças Armadas e as polícias militares para que se tornassem de uma vez por toda defensoras da democracia. Agora, são os militares que, sem qualquer pudor, fazem a revisão da História, transformam os democratas em diabos e promovem o elogio da ditadura.
Não houve sequer o embate dos políticos com os militares, dos democratas com os autoritários. A volta dos militares ao poder de certa forma afirma, mais de quatro décadas depois, o êxito da abertura lenta, gradual e segura promovida por Golberi e Geisel. Foi como se eles tivessem dito: vamos entregar o poder e nos preservar, para que no futuro novas gerações de militares voltem. Tímidos, medrosos, conciliadores, os civis democratas não compreenderam o perigo que aquilo representava, não tiveram coragem para enfrentar os militares, fingiram que nada tinha acontecido, que a ditadura era um presente do céu, que a democracia ia durar para sempre, que o povo não precisaria defendê-la, que não precisava conhecer os fatos que ignorou durante as décadas de governos autoritários, de repressão e censura. Faltou educar o povo sobre sua História, as verdades e mazelas da ditadura, o valor da democracia e a necessidade de defendê-la.
Os militares não voltariam agora ao proscênio sem a ajuda da mídia golpista. Democratizar a comunicação – que nada mais é do que pôr em prática a Constituição de 1988, coisa que os governos do PSDB e do PT não fizeram – é condição fundamental para a democracia.
Foi com participação decisiva da globoetc. que o PSDB e o PMDB deram o golpe; os dois partidos assumiram o governo golpista, mas quem herdou os votos das multidões que foram às ruas incentivadas pela globoetc. foi a extrema direita militar – que, agora sabemos, não é a corporação, é uma parte dela, envolvida com o crime organizado, assim como as polícias militares, organizadas pela ditadura, que foram mantidas intactas pela Nova República, assumiram o papel de repressão dos movimentos populares, de extermínio de pobres, favelados, negros e jovens, ligaram-se ao tráfico e formaram as milícias.
Uma reforma das polícias é fundamental para organizar um Estado democrático no Brasil. Assim como é fundamental democratizar a comunicação. Não existe em nenhuma nação democrática uma imprensa concentrada como existe no Brasil, capaz de decidir o que o povo vai saber e o que não vai fazer, de eleger e depor presidentes, como um poder acima dos outros; nem mesmo e muito menos nos EUA há uma Globo – lá, a imprensa está cumprindo o papel de desmascarar o governo fake do tri-bi-milionário Donald Trump.
Ainda mais importante do que democratizar a mídia e as forças policiais é democratizar a educação. Não existe nada mais importante para uma nação do que a educação do seu povo. Os governos do ciclo democrático que terminou em 2016 não precisariam fazer mais nada se implantassem em todo o país as escolas da democracia: um sistema de educação pública universal de qualidade em tempo integral. Começando pela educação infantil e sendo implantada gradualmente até a universidade e a pós-graduação, uma educação assim teria feito uma revolução democrática sólida e duradoura no Brasil, como fez nos países capitalistas mais avançados.
Se começasse em 1995, no primeiro governo FHC, e continuasse nos governos seguintes, de Lula e Dilma, como um programa de Estado, não um programa partidário, as crianças que entraram na escola naquele ano já estariam hoje no doutorado. Milhões de jovens estariam na universidade, outros milhões no ensino médio, outros mais no ensino fundamental.
O Brasil tem excelentes educadores e projetos educacionais, não é esse o problema. O problema é o presidente e o partido vencedores na eleição considerarem a educação do seu povo como uma escolha perigosa, porque um povo educado é um povo difícil de ser enganado e manipulado. Com exceção de Leonel Brizola e Darci Ribeiro, nenhum político brasileiro teve essa coragem até hoje, e governos posteriores, no Rio de Janeiro, trataram de destruir seu legado. O PT preferiu expandir a educação distribuindo dinheiro público para a iniciativa privada, fazendo o processo inverso, do fim para começo, contemplando a universidade e o ensino técnico, modelo que enriqueceu, por exemplo, o casal de políticos Muniz, célebre por sua corrupção.
Para democratizar a educação é preciso, primeiro, tornar a educação prioridade e destinar muito dinheiro no orçamento para ela. Atualmente, o dinheiro público é destinado, quase todo, para pagar banqueiros e o restante para o pagamento dos privilégios das castas de juízes, militares, políticos e funcionários públicos graduados. Não sobra dinheiro para o povo: educação, saúde, transporte, ambiente, lazer, qualidade de vida nas cidades etc. não cabem no orçamento.
A educação pública de qualidade é cara, mas não é despesa, é investimento, o mais valioso, pois trará resultados incalculáveis para a nação. Escolas em tempo integral, escolas com espaços e instalações de primeira, com os melhores professores, bem remunerados, com pedagogia moderna, com equipamentos de ponta, com equipamentos esportivos e prática de esportes, com ateliês de arte, com oficinas de ofícios, com refeições e alimentos de qualidade, naturais, orgânicos, com nutricionista, médica, dentista, psicóloga. Enfim, uma escola de qualidade na qual crianças e jovens passem o dia, enquanto seus pais trabalham, convivendo e praticando a democracia, ricos, medianos e pobres, protagonistas da sua formação, com auxílio dos melhores profissionais e a participação dos pais na vida escolar.
Quem pode ser contra uma educação assim? É claro que ela não interessa a uma minoria que já tem educação de qualidade para seus filhos, que paga caro por ela, e que reage a toda mudança, porque quer manter a desigualdade e a injustiça. Mesmo ela, porém, em gerações futuras, se beneficiará dos ganhos que a educação e a democracia trazem, tais como a diminuição da violência que apavora os privilegiados. Por melhor que seja uma boa escola particular, ela não oferece a riqueza da convivência democrática entre diferentes, porque nela todos são ricos.
O atual candidato do PT, um professor, ex-ministro da Educação, poderia ter apresentado essa proposta, só essa, como carro-chefe e síntese do seu programa – como a construção de Brasília foi a síntese do programa vitorioso de JK. Isso jogaria muita luz sobre a proposta, lhe daria personalidade, distinguindo-o do Lula, ampliaria o debate sobre o que realmente importa e no mínimo plantaria uma semente para a próxima campanha eleitoral.
Enquanto essa semente não for plantada, o Brasil não tem futuro democrático. Teremos apenas bons períodos de ilusão, como os anos JK, o Plano Real e a Era Lula, alternados com governos autoritários, obscurantistas, reacionários, antipovo.