sábado, 11 de abril de 2020

O mundo após a pandemia

O que não falta nesse isolamento social é assunto para ler, pensar, escrever, ver. Vamos ao artigo do filósofo Paulo Giraldeli, que reproduzo abaixo. Ele toca em pontos importantes sobre os quais já escrevi -- como o fato de que o deus mercado não nos salva da pandemia e vai correndo pedir ajuda ao diabo Estado -- e fala coisas que quero comentar -- como o projeto político do capitão presidente.

A pandemia pôs em colapso o neoliberalismo e escancarou sua ideologia nefasta. O mercado não resolve tudo, como mentem os neoliberais há décadas, o Estado é inevitável, o setor público é imprescindível. A pandemia mostra isso, quando os governos e empresários neoliberais correm para pedir ajuda ao Estado e esquecem até a tal da "responsabilidade fiscal", que há cinco anos era tão importante que foi motivo para impichar uma presidenta reeleita. O mercado não resolve tudo e não resolve o principal, agora até os capitalistas reconhecem, mas isso não é novidade: em toda crise capitalista é assim -- em 2008, o Estado foi chamado para socorrer os bancos.

A questão é outra (assim como o impeachment também não foi por crime de responsabilidade fiscal), e precisa ficar bem clara: a questão não é se o Estado é importante ou não, se deve ser maior ou menor, a questão é que os "neoliberais" querem que o Estado sirva a eles -- socorrendo bancos, por exemplo, ou emprestando dinheiro subsidiado pelo BNDES, desonerando empresas, financiando agroexportações, liberando a Amazônia para ser desmatada etc.

"Neoliberais" só reclamam quando o Estado destina dinheiro para pobres, para trabalhadores, para programas sociais, para educação, saúde pública, transporte público, agricultura familiar, meio ambiente etc.

Trata-se de disputar para quem vai o dinheiro público, trata-se de uma disputa pelo Estado porque o Estado controla os impostos, sua arrecadação e destinação. Os neoliberais querem que o Estado arrecade dinheiro dos trabalhadores e o destine aos empresários. Simples assim. Justificam isso dizendo que são eles -- as empresas privadas -- que produzem. E contam com uma fantástica máquina de propaganda, que é a mídia tradicional, no Brasil em especial a Rede Globo, para dizer diariamente que o setor público é uma merda e que a iniciativa privada é o bicho.

A pandemia desmascara isso, quando mostra que o "mercado" não é capaz de enfrentar um vírus e que o setor público -- o tão atacado SUS à frente -- é necessário e eficiente.

Essa inversão de valores a pandemia está fazendo, e conta involuntariamente com a própria máquina de propaganda neoliberal, liderada pela Globo. Giraldeli diz que o mundo pós-pandemia não poderá mais ser neoliberal. Isso é certo, aliás, o mundo da pandemia já não é mais neoliberal. O que falta são análises, reportagens, matérias diárias mostrando isso. Essa economia de guerra não tem nada de neoliberal. A própria China, que lançou a pandemia e a conteve rapidamente, não é uma nação de economia neoliberal, é uma nação comunista (nunca é demais lembrar o que o capitalismo tenta esconder), com Estado forte, totalitário.

Essa é minha primeira crítica: não se trata do mundo pós-pandemia, mas do mundo na pandemia, não se trata do mundo futuro, mas do mundo atual.

O capitalismo, o Estado capitalista, está se revirando para enfrentar a pandemia, e usando para isso, intensamente, o setor público. O mercado só atua na crise episodicamente, explorando oportunidades -- é o caso de empresas que produzem e vendem como nunca produtos emergenciais, inclusive aumentando astronomicamente seus preços, e é também o caso dos larápios que produzem e vendem golpes de todos os tipos (isto também é "mercado"). Afora esses espertos e espertalhões, é sempre o setor público quem está atuando.

No Brasil, o setor privado não foi nem mesmo convocado pelo Estado, como em outros países, para produzir respiradores, máscaras, medicamentos (exceto a ideológica e estelionatária cloroquina) hospitais de campanha (excelente oportunidade para as PPP -- Parcerias Público Privadas, que não me lembro de serem sequer mencionadas nessa crise). É claro que essa inoperância faz parte da incompetência e má vontade do governo, mas se o mercado fosse tão eficiente e ágil já teria atendido a demanda social.

O que eu não vejo é o que o filósofo ressalta no final do seu texto: a esquerda pensando, escrevendo, falando, propondo políticas para a crise atual. Quem está no comando é o governo desgovernado e quem lhe faz oposição, influenciando sua política, é a Globo. A esquerda (falo da esquerda principal, que governou o Brasil durante 13 anos) continua do mesmo jeito: condenando, polarizando, esperando a volta do Lula, falando o que todo mundo já sabe, ou se calando, se omitindo (as principais iniciativas vêm do PSOL, Rede, PDT, e quem faz oposição ao capitão são o DEM, do Maia, e o PSDB, do Dória), sem agir, sem propor, sem fazer sua tão esperada e necessária autocrítica.

E não é difícil pelo menos rascunhar um programa de governo alternativo ao programa neoliberal, denunciando tudo que não funciona no neoliberalismo, tudo que ele promete e não faz, e afirmando tudo que vem sendo roubado dos brasileiros nos últimos cinco anos e tudo que funciona e nos salva no setor público. Com a pandemia, não se trata mais de discurso, mas de afirmar a necessidade de um SUS de qualidade e universal, de transporte público de qualidade, de saneamento básico universal, de um sistema de educação pública de qualidade universal, da agricultura familiar que produz alimentos orgânicos para nos alimentar (e não com agrotóxicos e para exportação, como o "agro" da propaganda da Globo), da proteção ao ambiente como eixo de todas as políticas públicas, de programas públicos de distribuição de renda.

Em relação a este último ponto, a pandemia escancarou um absurdo produzido pelo neoliberalismo: a quantidade de informais e desempregados que precisam de ajuda do Estado (R$ 600!) para não morrer de fome. Estamos reconhecendo o problema e a gravidade dele pela primeira vez! O Estado pela primeira vez está destinando dinheiro para essa parcela de dezenas de milhões de brasileiros. Mas é preciso que se diga que a informalidade e o desemprego fazem parte da política neoliberal! Eles não existem por acaso, mas porque nos últimos cinco anos, após o golpe, o Estado governado pelos neoliberais se dedicou a retirar direitos e empregos dos trabalhadores, a produzir mão de obra barata para o capitalismo, o chamado "exército de reserva", e a destinar para os empresários o dinheiro que era investido em programas sociais.

O que a esquerda precisa afirmar é que nós queremos o contrário disso, queremos um Estado que taxe as grandes fortunas, limite ao estratégico os incentivos fiscais e destine fartamente recursos para programas sociais.  

Por fim, uma observação sobre o projeto político do capitão. A afirmação do filósofo é interessante, mas me faz pensar que, apesar de ser uma besta ambulante há mais de trinta anos, fartamente conhecido pelos absurdos que fala e pelos planos criminosos que sempre alimentou, e que inclusive o excluíram do Exército, o atual presidente continua sendo um desconhecido da maioria. E já passou da hora de conhecê-lo em detalhes, visto que se tornou uma ameaça de morte para os brasileiros. No entanto, ele era uma ameaça quando deputados, uma ameaça quando candidato, uma ameaça como presidente, uma ameaça na pandemia, e agora uma ameaça para nosso futuro.

Mais uma vez, o problema não é a ameaça, não é o futuro -- é o presente, é o que o capitão já fez na sua campanha, o que está fazendo no governo, o que está fazendo nessa crise horrorosa. Seu governo é um desastre para os brasileiros, mas não para os capitalistas que ajudaram a elegê-lo, a Globo inclusive. Por isso, continuamos não sabendo nada importante sobre ele, porque ele tem uma máquina de propaganda digital monstruosa e porque não interessa à indústria da mídia ir a fundo na sua identidade.

O jornalismo e a ciência (política, social, econômica, psicológica e pura) precisam dissecar esse indivíduo e sua cadeia produtiva de males, ignorâncias e interesses. O capitão tem um programa político? Que programa é esse? A visão que prevalece, pelo menos para mim, é que ele juntou um punhado de oportunistas e reacionários de direita a partir do momento que demonstrou sua viabilidade eleitoral. E que esse saco de gatos, uma vez no poder, começou a brigar entre si, ao mesmo tempo em que demonstrava sua incompetência para governar e a inviabilidade de suas ideias, e implantava suas maldades contra o povo brasileiro. Só o apoio da indústria da mídia, que só mostra o que lhe interessa, era capaz de manter esse governo de pé, mas agora, com a pandemia, o mingau desandou de vez. Se o capitão tem de fato um projeto político de longo prazo -- como se dizia que o PT tinha, de pelo menos vinte anos --, precisamos conhecê-lo urgentemente. A princípio, todo presidente tem, pelo menos o projeto de terminar o mandato e ser reeleito, é o vício do poder, mas para isso é preciso ter um projeto estruturado, tanto em relação à administração do Estado, quanto em relação a forças políticas de apoio. E tanto em relação a uma coisa como a outra o governo do capitão é um desastre. O que seria então o seu projeto? Precisamos saber. Acrescento apenas, mais uma vez, que também gostaria de conhecer o projeto político da esquerda brasileira.


Da desobediência civil ao fim do neoliberalismo

Do blog do filósofo Paulo Giraldeli, 10/4/20

Clique aqui para ler a íntegra

Todas as pessoas com alguma escolaridade e com bom senso seguem os especialistas: não há cura para a covid-19, e a medida a tomar é o isolamento radical e horizontal. Mas o presidente Jair Bolsonaro não segue isso. Ele insiste em sair às ruas sem proteção, criar aglomerações e, em pronunciamentos na TV, dizer que a doença é uma “gripinha” e que a tal cloroquina pode curá-la. Nossa desobediência civil é, portanto, contra ele, um mandatário que quer o caos. Um homem que não quer governar; o que ele quer -- e administrar sua estada no Planalto como militante antiliberal e anti-esquerda, e ele assim faz por meio da promoção do absurdo.

Ele, Bolsonaro, quer o caos em doses homeopáticas! O caos administrado com cuidado, que é o seu cálculo, enfraquece a República e, então, lhe dá a chance de iniciar o parto da sua sociedade futura. Trata-se da sociedade anarcocapitalista em moldes especiais: o capitalismo financeiro encapsulando uma sociedade quase anômica, abraçada por igrejas evangélicas, milícias e famílias ricas armadas. Ele não sabe desenhar bem tal coisa, mas é isso que ele quer. Ele vai realizar uma tal distopia?

Temos um dado objetivo contra ele, que pode nos ajudar a barrá-lo.

Bolsonaro tem um ponto fraco no seu esquema de jogo. O neoliberalismo era a sua arma para enfraquecer a República, na medida que diminuía o estado em um nível assustador. Ele se aliou a Paulo Guedes para tal. E a Fiesp o apoiou. Mas, com a pandemia, viu a chance de promover o caos em doses homeopáticas sem o neoliberalismo, somente incorporando os desejos do vírus. Agora, no entanto, dado que o problema social se avolumou, ele próprio não consegue conter seus próprios companheiros de viagem (ou antigos companheiros de viagem, os neoliberais) de seguirem em frente pedindo racionalidade.

Ora, racionalidade no nível que se pede é, em termos políticos, solicitar a ajuda do Estado. A sociedade mundial volta a perceber que a iniciativa privada não dá conta de proteger a sociedade, e parece retomar certo apreço pelo estado. Isso significa, em parte, que o mundo pós-pandemia, até por conta de todo estrago econômico e social causado, não poderá mais ser um mundo de idolatria da herança de Reagan e Thatcher.

O mundo pós-pandemia há de ser um mundo devastado, de mais migração, de mais barbárie. A espinha dorsal dos regimes políticos liberais, ou seja, o mercado funcionando por sua mão invisível para o bem, não mais será conteúdo do sustentáculo da maioria das campanhas políticas. Ninguém em sã consciência irá dizer, daqui para diante, que novas catástrofes não virão, e que o estado é dispensável. O problema todo é saber que Estado emergirá. Um Estado tutelar, autoritário, de cunho neofascista, ou um Estado indutor de vida livre e responsável, criador de oportunidades individuais e coletivas para o bem comum? Além disso, teremos de discutir, de novo, a ideia de desprivatização do Estado. Não adianta ter Estado que não seja efetivamente público.

As pessoas de esquerda terão chance de recolocar ideias no caldeirão de propostas do mundo pós-pandemia. Isso se não emendarmos uma pandemia em outra, ou se não nos metermos em uma guerra ou outras catástrofes maiores, por conta da miséria no mundo, que agora cresce em níveis jamais vistos. Mas, para que as pessoas de esquerda possam fazer isso, elas não podem mais ficar sem estudar e devem ser corajosamente críticas e autocríticas.

Paulo Ghiraldelli, 62, filósofo. Autor entre outros de A filosofia explica Bolsonaro (Editora Leya)