O Brasil tem tradição histórica autoritária, desde a independência proclamada pelo príncipe regente e em seguida estabelecida na constituição outorgada. O governo Lula tem enorme valor simbólico, ao demonstrar que o trabalhador é capaz – as elites conservadoras sabem disso e procuram a todo custo destruir essa ideia. Vejamos, por exemplo, um fato capital da nossa história, a abolição da escravatura.
A libertação dos escravos foi feita por lei assinada pela princesa imperial, a figura feminina mais importante do imaginário popular brasileiro. Seguiu a tradição autoritária inaugurada por seu avô: foi concedida, não foi arrancada pelos escravos. Na verdade, ela legalizou uma situação que vinha se afirmando de fato, mas ao fazê-lo tirou do povo e dos escravos o mérito de conquistá-la.
O modelo vai se repetir com Getúlio Vargas, ao “doar” a estrutura de proteção ao trabalho e criar a CLT. Mais recentemente, volta a acontecer com a redemocratização de 1985, quando as elites primeiro derrotam a emenda das diretas já para em seguida transferir o poder dos militares aos civis conservadores, indiretamente. É um fato recorrente na história brasileira, inaugurado, como disse, na independência, por Dom Pedro I. Um fato que faz diferença na formação de uma nação – os americanos, que conquistaram com armas sua independência, assumem como seus os valores que fundamentam sua sociedade, coisa que nós brasileiros nunca fizemos; o “jeitinho brasileiro” é a forma de o povo demonstrar o tempo todo que finge obedecer, mas não obedece, que finge reconhecer a autoridade, mas não a reconhece, que finge acreditar que este é o seu país, mas sabe que na verdade é o país dos “bacanas”.
Nesse sentido, o governo Lula contém avanços simbólicos importantes, ao demonstrar pela primeira vez na nossa história do que é capaz um simples operário. Mas o governo Lula também tem limitações claras, se olharmos para o que acontece, por exemplo, na Bolívia e mesmo na Venezuela, dois casos distintos na atual onda libertária da América Latina (que, já notou alguém, não deveria se chamar “Latina” e muito menos “América”, pois as civilizações já existiam aqui antes de Colombo, Cabral e Américo quem? Vespúcio. Na verdade, o termo América Latina é politicamente incorreto e ainda será substituído por outro, como “negro” foi substituído por “afrodescendente”, à medida que as populações indígenas assumirem o poder; a palavra é também um instrumento de libertação e de construção da história). O Brasil está mais para Chile, do que para Bolívia e Venezuela. Cada caso, porém, é um caso.
A Venezuela de Chávez está mais para Cuba de Fidel, com uma figura carismática, corajosa, que anda de uniforme militar e fala em socialismo, do que para Bolívia, que também tem uma figura carismática, mas que é a cara dos povos indígenas, cuja ascensão é a essência da revolução. O Brasil, com sua transição conservadora negociada, está mais para Chile, mas Lula tem a cara do povo brasileiro, como Evo tem a cara do povo boliviano. O militar Chávez veio das elites para libertar o povo venezuelano, como Fidel; a doutrina é fundamental para sua legitimação. Entre esses modelos, variáveis e símbolos se move a revolução na “América Latina” – uma mais popular, outra mais institucional; uma mais simbólica, outra mais ideológica; uma mais negociada, outra com rupturas.
Quais as limitações das mudanças no Brasil? O governo Lula promoveu transformações usando estritamente os limites da democracia burguesa representativa tradicional autoritária negociada pelas elites em 1985. Lula não promoveu nenhuma ruptura institucional, seu sucesso é um sucesso político individual somado à competência técnica da sua equipe, contraposto à incompetência e ao autoritarismo milenar das elites conservadoras brasileiras. É um sucesso fundamentalmente simbólico, principalmente quando confrontado com os avanços democráticos de outros povos vizinhos, especialmente o boliviano.
O que se vê na América Latina é um grande exercício para definir qual modelo, entre os dois ou três existentes, obterá mais sucesso num mesmo objetivo: promover a distribuição de renda e de poder, duas faces da mesma moeda que poderíamos chamar de democracia política e econômica. O Brasil parte de vantagens naturais e históricas, que o colocam na condição de potência mundial emergente. Por isso também tudo que se faz aqui é mais relevante, os olhos se concentram aqui e as ações políticas também.
A importância do sucesso brasileiro está no simbolismo de mostrar que um operário é mais capaz para dirigir o país do que os membros das elites jamais foram. O que os bolchevistas precisaram demonstrar depois da revolução russa de 1917, Lula demonstrou no Brasil sem revolução. Os limites das transformações no Brasil são: o presidencialismo com mandato de quatro anos (a reeleição foi uma arbitrariedade criada para beneficiar as elites, mas acabou por beneficiar também as mudanças promovidas por Lula); a concentração simbólica na figura do Lula; a desmobilização popular; a ausência de mudanças democratizantes no modelo instituído em 85 e reformado pelos governos neoliberais.
Essas ameaças à continuidade das mudanças são ameaças que vêm de fora, por assim dizer, mas há ainda um perigo adicional, que nasce nas entranhas do próprio poder reformador. Um perigo que já foi experimentado em Belo Horizonte. O governo Lula é um governo tenso também internamente e umas das razões do seu sucesso é a competência do presidente para administrar tensões. Lula foi sempre o fiel da balança no PT e continuou sendo no governo. No próximo governo petista esse fiel deixará de existir e a luta entre uma ala mais popular e outra mais elitista ficará aberta.
Uma das tentações da ala elitista é fazer alianças com a direita, sendo capaz mesmo de negociar – e na prática entregar – o poder a ela, como aconteceu na capital mineira. Não a direita tradicional, que governou na ditadura, mas a direita “moderna”, que governou com FHC. Especialmente a sua ala pretensamente não ideológica, pragmática. É nesse modelo ideológico “pragmático” que petistas e tucanos se encontram e esboçam um novo modelo conservador de Estado, referenciado muito mais nos Estados Unidos do que na autonomia dos povos indígenas, e que ocuparia a direita no espectro de transformação da “América Latina”. Um modelo capaz de conquistar a adesão das classes médias moralistas, “udenistas”, importantes não só como contingente eleitoral, mas também por sua capacidade de mobilização e convencimento (como ficou demonstrado na eleição para a Prefeitura de Belo Horizonte em 2008).
Como modelo brasileiro, ele teria enorme repercussão em toda a região. A questão é saber se ele ainda é possível, diante da velocidade das transformações em curso, e se tem competência para se impor. Nesse processo são fundamentais as alianças que se formarão na candidatura Dilma; é especialmente importante perceber que lugar ocuparão nela os “pragmáticos” e os “ideológicos”, não apenas do PT, mas também do PSDB.