quinta-feira, 5 de junho de 2014

A ditadura desavergonhada, velada, livre e vitoriosa

Cinquenta anos depois do golpe, o Brasil é ainda, em grande parte, a nação que a ditadura forjou*

O fato mais importante da ditadura que governou o Brasil de abril de 1964 a março de 1985 foi sua eficácia. Há muitas coisas a dizer sobre a ditadura, numa revisão histórica, cinquenta anos depois do golpe, já distante dos acontecimentos da época, que podem ser vistos, agora, como fatos históricos. Em 2014 já se pode definir a ditadura sem o perigo de cometer erros decorrentes do calor dos acontecimentos; quem comete esses erros hoje o faz por motivos ideológicos, como a direita protofascista, liderada por veículos de comunicação cada vez abjetos, mas mesmo estes se veem forçados a corrigir seus discursos, como aconteceu recentemente com o jornal O Globo.
Ditadura militar?
Direi adiante porque a ditadura foi eficaz. Antes, porém, quero citar os erros que não podem mais ser cometidos. O primeiro deles é chamá-la de ditadura militar: a ditadura foi ditadura, sem adjetivo. É verdade que o golpe foi dado por militares, que todos os presidentes do período foram militares e quando houve oportunidade de um civil assumir a presidência (o vice-presidente Pedro Aleixo, na doença e morte do general Costa e Silva), ele foi substituído por uma junta militar. No entanto, a conspiração e os governos não foram exclusivamente nem principalmente militares.
A participação civil no golpe e na ditadura foi sempre evidente e fundamental. Não falo da marcha da família que mobilizou a classe média, mas dos empresários, veículos de comunicação, políticos e tecnocratas que financiaram o golpe, participaram do golpe, incentivaram o golpe, pediram o golpe. Falo dos veículos de comunicação, dos políticos, dos tecnocratas e dos empresários que financiaram, apoiaram e participaram da perseguição aos opositores do regime. Falo dos tecnocratas, dos empresários, políticos e veículos de comunicação que se beneficiaram da ditadura e participaram dos governos dos presidentes militares. Falo dos políticos, empresários, veículos de comunicação e tecnocratas que sobreviveram à ditadura e continuam participando da vida econômica, social e política brasileira, gozando de poder e sem jamais terem sido punidos pelos crimes que cometeram – crimes contra indivíduos, de abuso de poder, tortura, sequelas, morte, mutilação e sumiço de corpos, e crimes contra a sociedade, de ruptura da ordem democrática, implantação de um regime de terror e desrespeito aos direitos constitucionais.
A ditadura não foi exclusivamente militar, foi também civil, foi uma ditadura de direita, de empresários, políticos e militares de direita. Embora não tenha simpatia por organizações militares, cuja finalidade é a guerra, portanto, em última instância, matar; organizações ligadas intrinsecamente à ideia de nação, que nos tempos modernos promoveu e continua promovendo as maiores carnificinas da História – o ser humano é um só em toda parte, preconceitos de nação, raça, cor, sexo e outros são estúpidos e manipulados por grupos políticos. Feita esta ressalva, é preciso fazer justiça aos militares brasileiros.
Militares não são classe social, como empresários, trabalhadores, camponeses, latifundiários ou mesmo classes médias. Não têm portanto interesses próprios, a não ser interesses corporativos – como médicos, advogados, juízes etc. Há entre os militares indivíduos de todas as classes sociais. As Forças Armadas brasileiras, especialmente o Exército, participaram da política nacional manipuladas por civis que defendiam seus interesses. Isso começou com a proclamação da República, quando o marechal Deodoro, um monarquista, mas figura símbolo do Exértico, foi guindado à condição de líder do golpe que derrubou D. Pedro II. A República começou com dois presidentes militares (Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto), mas cinco anos depois os civis "republicanos" – as oligarquias latifundiárias – assumiram o governo, mantendo-o até a Revolução de 1930, durante quase quatro décadas.
No entanto, por terem liderado sua proclamação, os militares brasileiros permaneceram durante praticamente um século como uma espécie de "defensores da República", manifestando-se em sucessivos golpes e tentativas de golpe. Os espisódios durante a República Velha são inúmeros e o mais espetacular é a Coluna Prestes. Não haveria a Revolução de 30 sem os militares, sem os tenentes. Da mesma forma, após a redemocratização de 1945: durante a "democracia populista", os militares se levantaram diversas vezes, a favor de um lado e de outro, até, finalmente, tomarem o poder e o conservarem durante 21 anos, dispensando intermediários – isto é, "civis" --, como de outras vezes, e elegendo entre eles mesmos os presidentes da ditadura.
Democracia sem militares
Destes fatos se depreende também – além do fato de os militares terem agido sempre fustigados por interesses "civis" – uma das características mais importantes do período histórico atual, iniciado no governo de Tancredo-Sarney: pela primeira vez na história republicana, depois de quase um século (1889-1985), os militares estão distantes da política, quietos nos quartéis, limitando-se às suas funções constitucionais e à defesa de interesses corporativos, sem apoiarem iniciativas golpistas. É um fato auspicioso, que precisa ser reconhecido, pois representa uma democratização efetiva do país, com perspectiva duradoura, pois os golpistas brasileiros nunca foram capazes de tomar o poder sem apoio das Forças Armadas, em especial do Exército. Os militares saíram da política, deixaram de se considerar os "guardiões da República", deixaram de se organizar como força golpista, embora não faltem apelos – civis – para que voltem.
Este acontecimento histórico, a se confiar na tetralogia do jornalista Elio Gaspari sobre a ditadura, se deve ao general Golbery do Couto e Silva, eminência do governo Geisel, que, percebendo a embrulhada em que tinha se metido a corporação – com quebra de hierarquia e descontrole do chamado "setor de informações" – e armou uma trama para que o Exército recuasse organizadamente e deixasse o campo de batalha sem ser derrotado, devolvendo o poder aos "civis" e preservando a instituição. Foi a chamada "distensão lenta e gradual", que primeiro encerrou a censura à imprensa, depois extinguiu o AI-5, promoveu a anistia e restituiu as eleições diretas – tudo gradativamente, tanto que os governadores voltaram a ser eleitos pelo povo em 1982, mas o presidente, só em 1989. Assim, impediu-se que a ditadura caísse pelas mãos do povo, com as consequências que uma verdadeira revolução tem.
O fato é que a obra da ditadura e o gênio político do general Golbery continuam presentes no Brasil "democrático" de hoje. Ao se retirar da "guerra interna", o Exército brasileiro foi, digamos assim, destruindo pontes para impedir que o inimigo o alcançasse. As principais "pontes" foram a eliminação do PTB, a anistia e a derrota da emenda das eleições diretas. Impedindo que Brizola refundasse o PTB, a ditadura tornou permanente a ruptura com o Brasil democrático pré-64, o Brasil getulista, populista, popular. Aprovando a anistia, garantiu que os crimes cometidos por ela não seriam punidos. Derrotando as "diretas já", possibilitou que o primeiro presidente "civil" fosse um moderado, "confiável", escolhido em conchavos e não pelo voto popular – aceitou um Tancredo e ganhou de presente um Sarney, homem do regime desde o primeiro momento.
Parênteses para as mortes de presidentes brasileiros do período. A história da ditadura é pontuada, do começo ao fim por mortes misteriosas ou no mínimo inesperadas dos seus presidentes e de lideranças iminentes: Castelo Branco, num acidente de avião; Costa e Silva, de uma doença repentina; JK, num acidente rodoviário; Jango, de um mal-estar súbito; Lacerda, idem, e, por fim, Tancredo, internado na véspera da sua posse.
Os dois golpes
Continuando: a ditadura vitoriosa recuou sem grandes perdas nos seus efetivos e garantindo que o "inimigo" não voltasse a ocupar as posições que tinham antes do golpe. Era um inimigo enfraquecido. A ditadura começou, igualmente de forma planejada e organizada, assustando e usando as classes médias para apoiar sua assunção; os golpistas diziam – por meio da cara e sistemática propaganda produzida pelo Ipes – que eram eles quem defendia a democracia. Ganharam apoio da igreja católica, puseram nas ruas as marchas da família. Uma vez no poder, a ditadura caçou e destruiu seu primeiro inimigo: Jango, o PTB, os getulistas, os sindicatos, os sindicalistas, os comunistas, o PCB – os trabalhadores. Foi o primeiro golpe.
O segundo golpe veio em 1968, com a decretação do AI-5. Não foi mais contra os trabalhadores, que já estavam desarticulados, vencidos; em dezembro de 1968 o golpe foi contra as classes médias, lideradas pelos estudantes, que, a partir do primeiro golpe, perceberam, uns imediatamente, outros mais lentamente, que tinham sido enganados. Os cinco anos percorridos pelo Brasil entre o primeiro e o segundo golpe formam um período de mobilização crescente das classes médias, um despertar radiante e combativo dos intelectuais, jornalistas, artistas, universitários. São estes – ou os melhores destes, os mais combativos, os mais idealistas – que serão brutalmente aniquilados a partir do AI-5, quando optam por se armar, como o inimigo, e lutar uma luta desigual na qual não têm nenhuma chance.
Além de garantir que seus crimes não seriam punidos no governo "civil" que viria a seguir, além de impedir a volta do PTB e a eleição direta do presidente seguinte, a ditadura, ao recuar, deixava seus inimigos aniquilados. Ela tinha sido amplamente vitoriosa no seu objetivo inicial – destruir as organizações dos trabalhadores e o getulismo – e na sua segunda missão – liquidar os melhores quadros das classes médias. Foi um grande estrago, uma vitória cujos reflexos perduram.
De quebra, a ditadura legou ao país duas instituições símbolos do autoritarismo e que continuam cumprindo suas funções antidemocráticas ainda hoje – uma manipulando a opinião pública, outra reprimindo os trabalhadores: a Globo e a Polícia Militar. Despreparada para as funções que lhe são atribuídas, a PM cumpre hoje, na "democracia", o papel que na ditadura foi principalmente do Exército: perseguir e eliminar permanentemente os movimentos populares, os "comunistas", os pobres, os trabalhadores. À Globo, líder dos veículos de comunicação protofascistas, que prosperou durante a ditadura e atuou como seu porta-voz, cabe deformar as informações e influenciar a população, com sua infinidade de canais de televisão e rádio, jornais, revistas etc.
Uma última palavra sobre a economia, que, afinal, é o que move os atores políticos: os protagonistas do golpe e da ditadura estiveram sempre de olho nos lucros das grandes empresas às quais servem, e o governo dos EUA, "parceiro" dos golpistas, também defendia os interesses das suas multinacionais. O modelo econômico brasileiro vigente durante a ditadura – o desenvolvimentismo – nasceu no governo JK e continua hoje no governo Lula-Dilma. Lula e JK demonstraram que é possível fazer o país crescer na democracia, gerando amplos lucros. A democracia no entanto exige atendimento das demandas populares e talvez crescimento menor – que já é gigantesco, considerando-se o tamanho das economias mundial e brasileira atuais. O "milagre" do crescimento de 10% ao ano ou mais e do lucro monstruoso, como aconteceu entre 1968 e 1973, é que exige ditadura, porque é feito com intenso arrocho salarial, só possível com o desmantelamento das organizações dos trabalhadores – tarefa primeira e objetivo maior do golpe de 1964.

* Publicado originalmente no jornal O Cometa Itabirano, edição 384, de abril de 2014, e republicado aqui atendendo à sugestão de um amigo.