Cinquenta anos depois do golpe, o Brasil é
ainda, em grande parte, a nação que a ditadura forjou*
O fato mais importante da ditadura que governou o
Brasil de abril de 1964 a março de 1985 foi sua eficácia. Há
muitas coisas a dizer sobre a ditadura, numa revisão histórica,
cinquenta anos depois do golpe, já distante dos acontecimentos da
época, que podem ser vistos, agora, como fatos históricos. Em 2014
já se pode definir a ditadura sem o perigo de cometer erros
decorrentes do calor dos acontecimentos; quem comete esses erros hoje
o faz por motivos ideológicos, como a direita protofascista,
liderada por veículos de comunicação cada vez abjetos, mas mesmo
estes se veem forçados a corrigir seus discursos, como aconteceu
recentemente com o jornal O Globo.
Ditadura militar?
Direi adiante porque a ditadura foi eficaz. Antes,
porém, quero citar os erros que não podem mais ser cometidos. O
primeiro deles é chamá-la de ditadura militar: a ditadura foi ditadura, sem adjetivo. É
verdade que o golpe foi dado por militares, que todos os presidentes
do período foram militares e quando houve oportunidade de um civil
assumir a presidência (o vice-presidente Pedro Aleixo, na doença e
morte do general Costa e Silva), ele foi substituído por uma junta
militar. No entanto, a conspiração e os governos não foram
exclusivamente nem principalmente militares.
A participação civil no golpe e na ditadura foi
sempre evidente e fundamental. Não falo da marcha da família que
mobilizou a classe média, mas dos empresários, veículos de
comunicação, políticos e tecnocratas que financiaram o golpe,
participaram do golpe, incentivaram o golpe, pediram o golpe. Falo
dos veículos de comunicação, dos políticos, dos tecnocratas e dos
empresários que financiaram, apoiaram e participaram da perseguição
aos opositores do regime. Falo dos tecnocratas, dos empresários,
políticos e veículos de comunicação que se beneficiaram da
ditadura e participaram dos governos dos presidentes militares. Falo
dos políticos, empresários, veículos de comunicação e
tecnocratas que sobreviveram à ditadura e continuam participando da
vida econômica, social e política brasileira, gozando de poder e
sem jamais terem sido punidos pelos crimes que cometeram – crimes
contra indivíduos, de abuso de poder, tortura, sequelas, morte,
mutilação e sumiço de corpos, e crimes contra a sociedade, de
ruptura da ordem democrática, implantação de um regime de terror e
desrespeito aos direitos constitucionais.
A ditadura não foi exclusivamente militar, foi
também civil, foi uma ditadura de direita, de empresários,
políticos e militares de direita. Embora não tenha simpatia por
organizações militares, cuja finalidade é a guerra, portanto, em
última instância, matar; organizações ligadas intrinsecamente à
ideia de nação, que nos tempos modernos promoveu e continua
promovendo as maiores carnificinas da História – o ser humano é
um só em toda parte, preconceitos de nação, raça, cor, sexo e
outros são estúpidos e manipulados por grupos políticos. Feita
esta ressalva, é preciso fazer justiça aos militares brasileiros.
Militares não são classe social, como
empresários, trabalhadores, camponeses, latifundiários ou mesmo
classes médias. Não têm portanto interesses próprios, a não ser
interesses corporativos – como médicos, advogados, juízes etc. Há
entre os militares indivíduos de todas as classes sociais. As Forças
Armadas brasileiras, especialmente o Exército, participaram da
política nacional manipuladas por civis que defendiam seus
interesses. Isso começou com a proclamação da República, quando o
marechal Deodoro, um monarquista, mas figura símbolo do
Exértico, foi guindado à condição de líder do golpe que derrubou
D. Pedro II. A República começou com dois presidentes militares
(Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto), mas cinco anos depois os
civis "republicanos" – as oligarquias latifundiárias –
assumiram o governo, mantendo-o até a Revolução de 1930, durante
quase quatro décadas.
No entanto, por terem liderado sua proclamação,
os militares brasileiros permaneceram durante praticamente um século
como uma espécie de "defensores da República", manifestando-se
em sucessivos golpes e tentativas de golpe. Os espisódios durante a
República Velha são inúmeros e o mais espetacular é a Coluna
Prestes. Não haveria a Revolução de 30 sem os militares, sem os
tenentes. Da mesma forma, após a redemocratização de 1945:
durante a "democracia populista", os militares se levantaram
diversas vezes, a favor de um lado e de outro, até, finalmente,
tomarem o poder e o conservarem durante 21 anos, dispensando
intermediários – isto é, "civis" --, como de outras vezes, e
elegendo entre eles mesmos os presidentes da ditadura.
Democracia sem militares
Destes fatos se depreende também – além do
fato de os militares terem agido sempre fustigados por interesses "civis" – uma das características mais importantes do período
histórico atual, iniciado no governo de Tancredo-Sarney: pela
primeira vez na história republicana, depois de quase um século
(1889-1985), os militares estão distantes da política, quietos nos
quartéis, limitando-se às suas funções constitucionais e à
defesa de interesses corporativos, sem apoiarem iniciativas
golpistas. É um fato auspicioso, que precisa ser reconhecido, pois
representa uma democratização efetiva do país, com perspectiva
duradoura, pois os golpistas brasileiros nunca foram capazes de tomar
o poder sem apoio das Forças Armadas, em especial do Exército. Os
militares saíram da política, deixaram de se considerar os "guardiões da República", deixaram de se organizar como força
golpista, embora não faltem apelos – civis – para que
voltem.
Este acontecimento histórico, a se confiar na
tetralogia do jornalista Elio Gaspari sobre a ditadura, se deve ao
general Golbery do Couto e Silva, eminência do governo Geisel, que,
percebendo a embrulhada em que tinha se metido a corporação – com
quebra de hierarquia e descontrole do chamado "setor de
informações" – e armou uma trama para que o Exército recuasse
organizadamente e deixasse o campo de batalha sem ser derrotado,
devolvendo o poder aos "civis" e preservando a instituição. Foi
a chamada "distensão lenta e gradual", que primeiro encerrou a
censura à imprensa, depois extinguiu o AI-5, promoveu a anistia e
restituiu as eleições diretas – tudo gradativamente, tanto que os
governadores voltaram a ser eleitos pelo povo em 1982, mas o
presidente, só em 1989. Assim, impediu-se que a ditadura caísse
pelas mãos do povo, com as consequências que uma verdadeira
revolução tem.
O fato é que a obra da ditadura e o gênio
político do general Golbery continuam presentes no Brasil "democrático" de hoje. Ao se retirar da "guerra interna", o
Exército brasileiro foi, digamos assim, destruindo pontes para
impedir que o inimigo o alcançasse. As principais "pontes" foram
a eliminação do PTB, a anistia e a derrota da emenda das eleições
diretas. Impedindo que Brizola refundasse o PTB, a ditadura tornou
permanente a ruptura com o Brasil democrático pré-64, o Brasil
getulista, populista, popular. Aprovando a anistia, garantiu que os
crimes cometidos por ela não seriam punidos. Derrotando as "diretas
já", possibilitou que o primeiro presidente "civil" fosse um
moderado, "confiável", escolhido em conchavos e não pelo voto
popular – aceitou um Tancredo e ganhou de presente um Sarney, homem
do regime desde o primeiro momento.
Parênteses para as mortes de presidentes
brasileiros do período. A história da ditadura é pontuada, do
começo ao fim por mortes misteriosas ou no mínimo inesperadas dos
seus presidentes e de lideranças iminentes: Castelo Branco, num
acidente de avião; Costa e Silva, de uma doença repentina; JK, num
acidente rodoviário; Jango, de um mal-estar súbito; Lacerda, idem,
e, por fim, Tancredo, internado na véspera da sua posse.
Os dois golpes
Continuando: a ditadura vitoriosa recuou sem
grandes perdas nos seus efetivos e garantindo que o "inimigo" não
voltasse a ocupar as posições que tinham antes do golpe. Era um
inimigo enfraquecido. A ditadura começou, igualmente de forma
planejada e organizada, assustando e usando as classes médias para
apoiar sua assunção; os golpistas diziam – por meio da cara e
sistemática propaganda produzida pelo Ipes – que eram eles quem
defendia a democracia. Ganharam apoio da igreja católica, puseram
nas ruas as marchas da família. Uma vez no poder, a ditadura caçou
e destruiu seu primeiro inimigo: Jango, o PTB, os getulistas, os
sindicatos, os sindicalistas, os comunistas, o PCB – os
trabalhadores. Foi o primeiro golpe.
O segundo golpe veio em 1968, com a decretação
do AI-5. Não foi mais contra os trabalhadores, que já estavam
desarticulados, vencidos; em dezembro de 1968 o golpe foi
contra as classes médias, lideradas pelos estudantes, que, a partir
do primeiro golpe, perceberam, uns imediatamente, outros mais
lentamente, que tinham sido enganados. Os cinco anos percorridos
pelo Brasil entre o primeiro e o segundo golpe formam um período de
mobilização crescente das classes médias, um despertar radiante e
combativo dos intelectuais, jornalistas, artistas, universitários. São estes – ou os melhores destes, os mais
combativos, os mais idealistas – que serão brutalmente aniquilados
a partir do AI-5, quando optam por se armar, como o inimigo, e lutar
uma luta desigual na qual não têm nenhuma chance.
Além de garantir que seus crimes
não seriam punidos no governo "civil" que viria a seguir, além de impedir a volta
do PTB e a eleição direta do presidente seguinte, a ditadura, ao
recuar, deixava seus inimigos aniquilados. Ela tinha sido amplamente
vitoriosa no seu objetivo inicial – destruir as organizações dos
trabalhadores e o getulismo – e na sua segunda missão – liquidar
os melhores quadros das classes médias. Foi um grande estrago, uma
vitória cujos reflexos perduram.
De quebra, a ditadura legou ao país duas
instituições símbolos do autoritarismo e que continuam cumprindo
suas funções antidemocráticas ainda hoje – uma manipulando a
opinião pública, outra reprimindo os trabalhadores: a Globo e a
Polícia Militar. Despreparada para as funções que lhe são
atribuídas, a PM cumpre hoje, na "democracia", o papel que na
ditadura foi principalmente do Exército: perseguir e eliminar
permanentemente os movimentos populares, os "comunistas",
os pobres, os trabalhadores. À Globo, líder dos veículos de
comunicação protofascistas, que prosperou durante a ditadura e
atuou como seu porta-voz, cabe deformar as informações e
influenciar a população, com sua infinidade de canais de televisão
e rádio, jornais, revistas etc.
Uma última palavra sobre a economia, que, afinal,
é o que move os atores políticos: os protagonistas do golpe e da
ditadura estiveram sempre de olho nos lucros das grandes empresas às
quais servem, e o governo dos EUA, "parceiro" dos golpistas,
também defendia os interesses das suas multinacionais. O modelo
econômico brasileiro vigente durante a ditadura – o
desenvolvimentismo – nasceu no governo JK e continua hoje no
governo Lula-Dilma. Lula e JK demonstraram que é possível fazer o
país crescer na democracia, gerando amplos lucros. A democracia no
entanto exige atendimento das demandas populares e talvez crescimento
menor – que já é gigantesco, considerando-se o tamanho das
economias mundial e brasileira atuais. O "milagre" do crescimento
de 10% ao ano ou mais e do lucro monstruoso, como aconteceu entre
1968 e 1973, é que exige ditadura, porque é feito com intenso
arrocho salarial, só possível com o desmantelamento das
organizações dos trabalhadores – tarefa primeira e objetivo maior
do golpe de 1964.
* Publicado originalmente no jornal O Cometa Itabirano, edição 384, de abril de 2014, e republicado aqui atendendo à sugestão de um amigo.