O alarme de um carro dispara na Sexta-Feira da Paixão, às sete da manhã, incomodando a vizinhança. Já são mais de nove e meia e o barulho continua. Moradores reclamam, apelam ao porteiro do prédio.
- De quem é esse carro?
- O dono viajou.
- Então vai ficar assim o dia inteiro?
- Vai. Até acabar a bateria.
Trata-se de uma violência moderna, contra a qual as autoridades não agem e com a qual se conforma a população. Assim como cocôs de cachorro nos passeios, carros buzinando de noite, sirenas de "viaturas" policiais, veículos estacionados nos passeios, caminhões de caçambas, construções barulhentas que transformam passeios em canteiro de obras e as ruas em usinas de concretagem... Acontece com frequência, em toda parte. Fazer o quê? A não ser que apareça algum "maluco" com atitude, que arrombe o carro e desligue o fio. Ou que alguém consiga contatar com o proprietário. Ou que a polícia seja acionada -- tomará providência? O barulho é enlouquecedor: agudo, intermitente. Quando a gente pensa que parou, ele volta. Num dia em que as pessoas pensam que vão dormir mais um pouco, que vão descansar. A solução é pôr tampões de ouvido. Ou fugir da cidade, como faz a maioria (alguns vão fazer barulho em lugares sossegados). A vida contemporânea nas megalópoles é um somatório de pequenas violências que sofremos continuamente e às quais vamos nos acomodando, incapazes de reagir. Basta uma faísca, no entanto, para a revolta eclodir em grande violência de massa. Qual a razão? Contra quê? Todos sabemos. E então as mesmas forças da ordem, incapazes de resolver as pequenas violências cotidianas, são chamadas para apagar o grande incêndio.