A Lista de Schindler é o mais belo filme de Steven Spielberg e um dos maiores filmes da história do cinema. Tem o que precisa ser dito sobre o nazismo e sobre a perseguição aos judeus, mas, mais do que isso, mostra que nossas ações fazem diferença neste mundo. O diplomata italiano Enrico Calamai foi um Schindler também na Argentina, durante a ditadura em que o general Videla matou "uns sete ou oito mil".
Da Agência Carta Maior.
O 'Schindler' italiano que salvou centenas de vidas na Argentina
Darío Pignotti, de Roma
Se a Itália fosse uma Meca do cinema político como o era nos anos 60 e 70, seguramente os estúdios romanos de Cinecittá teriam filmado algo parecido à Lista de Schindler, aquela produção de Hollywood sobre um magnata alemão que resgatou cerca de mil judeus condenados a morrer em Auschwitz. O protagonista do filme que nunca se realizou seria o diplomata italiano Enrico Calamai, um herói silencioso que atuou no Consulado em Buenos Aires durante a ditadura, quando arriscou sua vida e sua carreira para facilitar a fuga de centenas de dissidentes políticos e partidários que pegaram em armas contra o experimento neonazista dos generais argentinos. "Nunca me detive a contar as pessoas que passaram pelo Consulado. Em um programa da RAI (TV italiana) disseram que foram mais de 400, sinceramente não sei se esse número é correto, não sei quantos receberam nossa ajuda para poder sair com vida da Argentina." A biografia de Calamai é a de um diplomata incomum no outono portenho de 1976, quando a chegada ao poder do general Videla era bem acolhida pela maioria das embaixadas ocidentais e comemorada secretamente pela do Brasil, como consta na intensa comunicação gerada pelo então embaixador João Batista Pinheiro.[...] "Até agora não se estudou a fundo como atuaram os serviços diplomáticos em geral frente à ditadura", afirma Calamai durante a conversa com a Carta Maior em Roma. "Não digo só pela Itália, me refiro à maioria dos países ocidentais, que foram completamente omissos ante as violações dos direitos humanos na Argentina." Como nos pactos mafiosos, o grosso dos diplomáticos instalados em Buenos Aires, salvo os da embaixada do México, onde o ex-presidente democrático Héctor Cámpora recebeu refúgio durante anos, optou por omitir-se. "Direta ou indiretamente, as principais embaixadas, inclusive aqui as da Itália, e acho lógico que também a do Brasil, embora não tenho informação concreta, foram informadas de que viria o golpe de estado. Estes avisos sobre a iminente derrubada do governo civil eram também uma forma de advertir que não aceitariam que as embaixadas recebessem refugiados, como haviam feito nossa embaixada e outras depois do golpe do Chile. E quase todos os países que receberam o aviso dos militares argentinos, pelo visto, entenderam o recado e o aceitaram. Agora, com o passar do tempo, compreendo que em torno da Operação Condor havia uma colaboração estreita das embaixadas e dos militares argentinos, e das embaixadas e seus próprios agregados militares. A diplomacia é algo muito próximo ao poder, e o foi durante as ditaduras. Os diplomatas sabem que se se opuserem ao poder serão ou marginalizados ou eliminados. Nessa época isto era um risco real." [...] As exéquias de João Paulo I, antecessor do papa polaco que frequentava o bairro de Calamai, foram um pretexto para estreitar as relações entre o Vaticano e Videla, que foi um dos chefes de Estado convidados. As gestões para a viagem de Videla e seu encontro com o então primeiro ministro italiano, foram realizadas pela loja maçônica Propaganda Due (P2), segundo consta em um livro lançado este ano na Universidade Roma Três. "A loja P2 se movia como um poder oculto e gozava de uma notável influência no serviço exterior italiano e no Vaticano, e um de seus principais homens, Licio Gelli, mantinha boas relações na Igreja. O Vaticano esteve muito próximo do regime argentino, não só porque coincidia com seu anticomunismo, mas porque contribuía na decisão de Roma de terminar com a teologia da liberação na América Latina. Dizia-se que o núncio apostólico jogava tênis com o almirante (Emilio) Massera, um dos membros da Junta, a quem correspondia o controle do Ministério do Exterior argentino. Mas também é preciso lembrar que os motivos ideológicos que levaram o Vaticano a apoiar os militares eram tão importantes como os interesses econômicos de empresas ligadas à Igreja que estavam radicadas na Argentina." Estas razões contribuem para explicar, segundo Calamai, porque o Estado do Vaticano omitiu-se durante anos em denunciar o genocídio argentino e negou ajuda aos familiares dos desaparecidos e prisioneiros.
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