O neoliberalismo contaminou parte da esquerda, inclusive do PT.
Da Agência Carta Maior.
Oitava carta às esquerdas: As últimas trincheiras
Faço um apelo aos governos brasileiro, equatoriano, venezuelano e argentino para que abandonem o projeto da reforma da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). E o apelo é especialmente dirigido ao Brasil dada a influência que tem na região.
Boaventura de Sousa Santos
Quem poderia imaginar há uns anos que partidos e governos considerados progressistas ou de esquerda abandonassem a defesa dos mais básicos direitos humanos, por exemplo, o direito à vida, ao trabalho e à liberdade de expressão e de associação, em nome dos imperativos do "desenvolvimento"? Acaso não foi por via da defesa desses direitos que granjearam o apoio popular e chegaram ao poder? Que se passa para que o poder, uma vez conquistado, se vire tão fácil e violentamente contra quem lutou para que ele fosse poder? Por que razão, sendo um poder das maiorias mais pobres, é exercido em favor das minorias mais ricas? Por que é que, neste domínio, é cada vez mais difícil distinguir entre os países do Norte e os países do Sul?
Os fatos
Nos últimos anos, os partidos socialistas de vários países europeus (Grécia, Portugal e Espanha) mostraram que podiam zelar tão bem pelos interesses dos credores e especuladores internacionais quanto qualquer partido de direita, não parecendo nada anormal que os direitos dos trabalhadores fossem expostos às cotações das bolsas de valores e, portanto, devorados por elas. Na África do Sul, a polícia ao serviço do governo do ANC, que lutou contra o apartheid em nome das maiorias negras, mata 34 mineiros em greve para defender os interesses de uma empresa mineira inglesa. Bem perto, em Moçambique, o governo da Frelimo, que conduziu a luta contra o colonialismo português, atrai o investimento das empresas extrativistas com a isenção de impostos e a oferta da docilidade (a bem ou a mal) das populações que estão sendo afetadas pela mineração a céu aberto.
Na India, o governo do partido do Congresso, que lutou contra o colonialismo inglês, faz concessões de terras a empresas nacionais e estrangeiras e ordena a expulsão de milhares e milhares de camponeses pobres, destruindo os seus meios de subsistência e provocando um enfrentamento armado. Na Bolívia, o governo de Evo Morales, um indígena levado ao poder pelo movimento indígena, impõe, sem consulta prévia e com uma sucessão rocambolesca de medidas e contra-medidas, a construção de uma auto-estrada em território indígena (Parque Nacional TIPNIS) para escoar recursos naturais. No Equador, o governo de Rafael Correa, que corajosamente concede asilo político a Julian Assange, acaba de ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não ter garantido os direitos do povo indígena Sarayaku em luta contra a exploração de petróleo nos seus territórios. E já em maio de 2003 a Comissão tinha solicitado ao Equador medidas cautelares a favor do povo Sarayaku que não foram atendidas.
Em 2011, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) solicita ao Brasil, mediante uma medida cautelar, que suspenda imediatamente a construção da barragem de Belo Monte (que, quando pronta será a terceira maior do mundo) até que sejam adequadamente consultados os povos indígenas por ela afetados. O Brasil protesta contra a decisão, retira o seu embaixador na Organização dos Estados Americanos (OEA), suspende o pagamento da sua cota anual à OEA, retira o seu candidato à CIDH e toma a iniciativa de criar um grupo de trabalho para propor a reforma da CIDH no sentido de diminuir os seus poderes de questionar os governos sobre violações de direitos humanos. Curiosamente, a suspensão da construção da barragem acaba agora de ser decretada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (Brasília) com base na falta de estudos de impacto ambiental.
A íntegra.