Reportagem da Agência Pública mostra bastidores da reunião mundial da Fifa realizada no Brasil.
Da Agência Pública, em 12/6/2014.
A falência moral da Fifa
por Jamil Chade
A Copa do Mundo está em todas as partes e, pelo planeta, milhões de
pessoas aguardam com ansiedade o início do torneio hoje. Mas existe um
lugar onde o futebol não é discutido e sequer tem credencial para
entrar: no Congresso da Fifa. Em uma mistura de caudilhismo, coronéis,
feudos europeus, monarquias asiáticas e clãs africanos, o evento anual
da entidade é o retrato de uma organização bilionária, mas falida
moralmente.
209 federações nacionais se reuniram nos últimos dois dias no
Transamérica Expo Center, no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, em um
encontro que explicitou a guerra pelo poder dentro da Fifa e escancarou
manobras para comprar votos e ganhar aliados. Tudo graças ao sequestro
da emoção de milhões de garotos e famílias pelo mundo que dão parte de
seu dinheiro ao futebol.
No centro do debate nesta semana estava a permanência de Joseph
Blatter como presidente da organização, um cargo que ele ocupa desde
1998. Na Fifa, ele já está desde 1975. Mas sua avaliação é de que sua
missão "ainda não acabou".
Nos dias que antecederam o Congresso, ele fez o que qualquer político
faria: percorreu seus currais eleitorais, fez promessas, apertou mãos,
sorriu para câmeras e criticou a oposição. Uma aula para qualquer
iniciante e mesmo alguns dos políticos mais experimentados.
Para as organizações regionais pequenas, prometeu que vai estudar
novos lugares para as seleções na Copa do Mundo, cargos na Fifa e
programas sociais, numa espécie de assistencialismo com direito à
retribuições em votos. Aos cartolas africanos, prometeu atacar o racismo
e, para os asiáticos, insistiu em dar um lugar especial para a questão
palestina.
Mas Blatter teve uma surpresa. Ao se reunir com as federações
europeias, não apenas não ganhou o apoio da Uefa como foi fortemente
questionado sobre os diversos escândalos de corrupção e sobre suas
intenções de se perpetuar no comando da Fifa. O último escânalo gira em
torno de denúncias que dirigentes teriam recebido dinheiro para escolher
o Catar como sede da Copa de 2012.
"Nunca fui tão desrespeitado", declarou Blatter, pouco acostumado a
ser pressionado ou ser exigido a dar explicações. Para os europeus,
havia chegado a hora de dar um basta no "reinado" de Blatter, e não
foram poucos os que acusaram de "não ter a capacidade de lidar com a
corrupção". Mas o golpe dos europeus duraria apenas algumas horas. Hábil
e acionando sua rede de aliados, Blatter fez questão de mostrar quem é
que manda na entidade.
Uma nova Fifa, uma nova Era
O primeiro passo do contra-golpe foi organizar o pagamento do que
equivale a uma “propina oficial”. Logo no início do Congresso – que
contou com a cicerone Fernanda Lima apresentando o suiço como “o homem
que guiou a Fifa com sucesso desde 1998″ – Blatter fez questão de
anunciar que estava usando parte da receita da Copa do Mundo no Brasil, a
mais lucrativa da história, para repartir bônus a todas as federações
nacionais. No total, o cartola usou US$ 200 milhões para ganhar aliados.
“Nunca estivemos tão ricos e tão fortes como agora”, declarou.
Cada dirigente saiu de São Paulo com US$ 700 mil a mais no bolso. Se o
valor não seria significativo para um alemão ou inglês, o dinheiro fez
delegações menores ovacionarem o "grande líder". "Vocês estão felizes?",
gritava de seu púlpito o dirigente suíço.
A distribuição do "presente" não era por acaso. Momentos depois,
surgiria na pauta do Congresso a proposta da Europa de limitar o mandato
do presidente da Fifa. A Uefa queria estabelecer uma idade máxima de 72
anos para que um dirigente pudesse ser eleito. Os europeus ainda
propunham uma lei que limitava os mandatos a apenas oito anos.
Para Blatter seria desastroso se qualquer uma das propostas fosse
aprovada. O dirigente de 78 anos estaria fora do “limite” e teria de
deixar sua cadeira em Zurique para um sucessor. O limite no número de
mandatos também não agradava.
Afinal, são poucos no Comitê Executivo da Fifa que têm qualquer
intenção de aceitar princípios de alternância de poder. Blatter, uma vez
mais, cobrou a aliança dos pequenos países em torno de seus votos para
derrubar o projeto europeu.
Assim, antes da votação, uma sequência de dirigentes pedia a palavra
para apoiar Blatter. Todos vindos de federações com pesos
insignificantes no futebol.
O primeiro foi o presidente da Federação de Futebol de Cuba, Luis
Hernandez. Vindo de um país cujos líderes se perpetuam no poder, o
cartola pediu ao Congresso que não aderissem à onda democrática. "Cuba
considera o limite como discriminatório", declarou. "O que importa é a
capacidade de trabalho. Sua capacidade física é importante. Mas sua
liderança e moral é o mais relevante", disse. "Ninguém troca um jogador
por idade se ele vai bem. Ninguém troca um treinador e nem o presidente da Fifa quando ela é vencedora", afirmou.
Quem também saiu em apoio a Blatter foi a delegação do Haiti, país
que recebeu dinheiro da Fifa durante anos. "Seria uma discriminação
catastrófica", declarou Yves Bart, presidente da Federação haitiana.
Omari Selemani, presidente da Federação do Congo, Sri Lanka e Palestina,
também saíram em apoio ao cartola.
Quando seus aliados acabaram de falar, Blatter cortou o papo e pediu
que a votação fosse iniciada. No momento de apurar o resultado, nenhuma
surpresa: as propostas feitas pelos europeus para reformar a Fifa e
permitir uma mudança de geração no comando da entidade foram enterradas.
E os dirigentes comemoraram como se tivessem feito um gol.
Enquanto uma vez mais a Fifa mostrava sua cara, as aberrações eram em
parte encobertas por salas elegantes do centro de convenções que ocupa
100 mil metros quadrados, ao redor dos quais o trânsito era desviado
pela CET para evitar protestos. E pelos dirigentes com seus ternos
impecáveis, carros de luxo e uma proteção equivalente a de chefes de
estado. Nos corredores, eles repetiam um comportamento de um clã que
deve poucas explicações ao mundo. Questionamentos são tratados como
traições. Aliados ganham beijos. E a ordem de todos é a de não falar a
palavra maldita: corrupção.
A íntegra.