Um bom texto que mostra coisas que ficam esquecidas (além de pessoas): que as políticas governamentais são articulações continuadas, não são mérito exclusivo de um político ou um governo, e que elas são tão mais bem-sucedidas quanto têm participação da sociedade.
Um dos méritos dos governos do PT e que corre risco com a eleição de Aécio ou Marina, é este. Lula e Dilma ampliaram o que chamam de "prática republicana".
A primavera começou oficialmente no finalzinho da segunda-feira, quase terça.
Do jornal GGN, em 26/9/14.
Fome de Verdade
Denise Paiva
A chegada da primavera, neste domingo, 21 de setembro, no Rio Janeiro, foi inesperadamente chuvosa com o poder de nos deter em casa, nos impelindo a ler e refletir. Chamou minha atenção o artigo de Flávia Oliveira, no Globo, "Valeu Betinho", e também a informação da ONU de que o Brasil está excluído do Mapa da Fome. Não consegui deter a "traição dos meus dedos" e toquei alguns telefones. Sim, precisei compartilhar e constatar o sentimento de que há de fato, no Brasil, uma grande fome: a fome de verdade.
Não temos mais aquela realidade que o Presidente Itamar fez questão de divulgar numa histórica reunião ministerial em fevereiro de 1993, através de uma socióloga de carreira, sua conterrânea de Juiz de Fora, chamada Ana Peliano. Tiramos, até com certo receio (eu participei deste trabalho), das prateleiras quase extintas do Ipea um estudo lá existente que passou a se chamar Mapa da Fome, para efeitos de divulgação, tendo sido, posteriormente, adotado pela FAO.
Tal estudo revelou a estimativa de que 32 milhões de brasileiros passavam fome. Esta fome foi debelada, nos últimos 20 anos, por esforço conjunto de governo e sociedade, distribuição de cestas básicas, reforma agrária, Lei Orgânica da Assistência Social, universalização da alimentação escolar, programas de transferência de renda – como bolsa escola, bolsa alimentação e depois bolsa família –, mas especialmente pelo combate à inflação.
Em particular merece ser assinalada e reconhecida a grande mobilização social chamada Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, liderada pelo Betinho, que teve seu auge e existência vigorosa apenas no governo Itamar, na medida que o próprio Presidente ordenava a todo o governo, ministérios e empresas públicas, a se engajarem na luta contra a fome e a miséria e assegurava instrumentos e mecanismos necessários para tal.
A expressão maior politica e institucional da politica de combate à fome foi, todavia, o Consea, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar, instalado em 13 de maio de 1993 com a presença e as bênçãos de Dom Helder Câmara. O Conselho inaugura um modelo inédito de participação, com hegemonia da sociedade civil: 21 personalidades indicadas pelo Movimento pela Ética na Política, principal protagonista do afastamento do ex-presidente Collor, se organizaram ao lado de oito ministros de estado.
Foi uma época pungente de percepção da realidade, mudança de paradigmas, quebra de preconceitos, realizações em parcerias, mediação de conflitos. Imaginem o agronegócio, representado por Ney Bittencourt, da Agroceres, ao lado de Plínio Arruda Sampaio. Imaginem CNA, CNC, CNI conversando e definindo pautas comuns com a Contag, MST, CUT.
Na verdade, Betinho entra na história, quando a história já tinha um intenso desenrolar. Este desenrolar teve início com a Frente Nacional de Prefeitos, liderada pela então Prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, ainda em novembro de 1992, que traz para o governo propostas concretas e emergenciais de combate à fome e de inclusão social.
Ainda na interinidade, Itamar se contrapôs ao discurso neoliberal da modernidade e indagou: “Que modernidade é esta que produz tanta fome e tanta miséria?”. Fez uma convocação instigante e agregadora pelo impeachment da fome e pela ética nas prioridades das politicas públicas, propostos por Cristovam Buarque.
Entretanto, faz-se importante recordar o fato político antecedente mais importante, que se deu ainda em janeiro de 1993: o encontro Itamar e Lula. Este encontro, precedido de alguns percalços, só aconteceu pelo empenho e habilidade politica de Pedro Simon, que contou com a colaboração de Eduardo Suplicy. Suplicy, autor da lei de Renda Mínima, recém-aprovada no Congresso, lutava para que ela se tornasse de fato politica pública governamental de combate à fome.
Naquela histórica reunião, Lula apresentou a Itamar a proposta de combate à fome do governo paralelo do PT, coordenada por José Graziano, hoje na FAO. Itamar, por sua vez, apresentou um documento sobre aquilo que já vinha sendo feito, inclusive com a incorporação das propostas da Frente Nacional de Prefeitos, já em andamento e coordenadas com seu ministério.
Itamar convida Betinho para presidir o Consea. Betinho alega problemas de saúde e pede apoio para articular e animar a ação da sociedade civil, que Dom Luciano Mendes de Almeida batiza de Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
Itamar, o breve, deixa o governo sob um clima de indignação de muitos que desejavam que ele devesse ter buscado a reeleição em função dos altos e inesperados índices de aprovação. Itamar em pouco tempo foi reconhecido pelo exemplo de governabilidade sem barganha, lisura, simplicidade, combate à inflação e politicas sociais que colocaram o ordenamento social previsto na Constituição de 88 na ordem do dia para todos os brasileiros.
Até hoje fico a me indagar: a polarização entre PSDB e PT, que tomou conta do Brasil nos últimos 20 anos, terá jogado a experiência do governo Itamar no limbo da história? Esta polarização insidiosa é que nos mata dia a dia? Esta pergunta eu compartilho com alguns ministros e representantes da sociedade civil partícipes daquela experiência, testemunhas e protagonistas daquele tempo que foi, de fato, um tempo de "Nova Política". Com eles, a palavra!
Se fomos capazes de enfrentar e debelar a fome de “pão” e a inflação, podemos e devemos debelar a fome de verdade para que não sejamos canibais da nossa própria história!
Rio de Janeiro, 21 de setembro de 2014.
A íntegra.