Bom sinal. Jornalistas não costumam reagir a demissões como esta, que acontecem todo dia. Durante a campanha eleitoral do ano passado, acompanhei pelo facebook uma discussão em que uma coleguinha argumentava mais ou menos assim: "Todo mundo sabe que não pode escrever contra o governador Aécio, que ingenuidade é essa agora?" A carta aberta é tão lúcida que merece ser transcrita na íntegra.
Jornalistas de A Tarde protestam contra a demissão de Aguirre Peixoto
Do Bahia toda hora.
Jornalistas de A Tarde protestaram nesta terça-feira (8/2/11) com uma carta aberta contra a demissão do repórter Aguirre Peixoto, reconhecido no mercado por seu profissionalismo, equilíbrio e ética. De acordo com o documento, o jovem jornalista teria sido demitido por pressão de empresários da construção civil. O manifesto da redação foi assinado por mais de 100 profissionais.
"Hoje é um dia triste para não só para nossa história pessoal, mas também para A Tarde e, principalmente, para o jornalismo da Bahia. Um dia em que A Tarde, um jornal quase centenário e que já foi o maior do Norte e Nordeste e que tinha o singelo slogan 'Saiu n'A Tarde é verdade', se curvou. Cedeu a pressões econômicas difusas e demitiu um profissional exemplar. Aguirre Peixoto teve a cabeça entregue em uma bandeja de prata a empresas do mercado imobiliário em uma tentativa de atração e reaproximação com anunciantes deste setor. Tentativa esta que pode dar certo ou não. Uma medida justificada por um suposto "erro grosseiro" não reconhecido pela diretoria de jornalismo, pelo editor executivo, pelo editor chefe, por secretários de redação, editor coordenador ou editores de política. Uma medida, enfim, que só pode ser entendida como uma demonstração de força excessiva, intimidatória à autoridade da direção de jornalismo, à coordenação de Brasil e à editoria de política. Uma demonstração de força desproporcional, porque forte não é aquele que age com força contra algo ou alguém mais fraco. Forte seria enfrentar, como o jornalismo de A Tarde estava enfrentando, empresários que iludidos pela promessa do lucro fácil e rápido põem em risco recursos financeiros de consumidores, o meio ambiente da cidade e que aviltam, desta forma, toda a cidadania soteropolitana. Aguirre era o elo mais fraco da corrente. Acima dele havia editores, coordenador, secretários de redação, editor executivo, editor chefe, diretor de jornalismo. Todos, em alguma medida, aprovaram a pauta, orientaram o trabalho de reportagem e autorizaram a publicação da reportagem. Isso foi feito sem irresponsabilidades, pois não foi constatado nenhum erro, muito menos um "erro grosseiro". Se algum erro foi cometido, o erro foi o da prática do jornalismo, uma atividade cada vez mais subversiva em época em que propositadamente se misturam alhos e bugalhos para confundir, iludir, manipular a opinião pública, a sociedade, a cidadania. É de se estranhar que uma empresa que se coloca como defensora da cidadania aja de tão vil maneira contra um de seus melhores profissionais. Recapitulando, Aguirre foi pautado para dar sequência às reportagens que fazia sobre a Tecnovia (antigo Parque Tecnológico). O fato novo era uma liminar concedida pela 10ª Vara Federal em que cassava multa aplicada ao empreendimento pelo Ibama. Era essa a pauta. No dia seguinte, a Tribuna da Bahia publicou matéria em que dizia que a liminar (decisão que pode ser revista) acabava com o processo criminal contra o empreendimento, que envolve governo do estado e duas poderosas construtoras. A matéria de A Tarde – dentro do padrão de qualidade que um dia fez deste um jornal de referência – ouviu o MPF e mostrou que se tratavam de dois processos distintos. O da multa, que foi cassada liminarmente e que o MPF afirmava que recorreria da decisão; e o criminal, que continuava em tramitação normal. A matéria de A Tarde estava tão certa que o MPF, posteriormente, publicou nota oficial na qual desmentia o teor da reportagem da Tribuna da Bahia (jornal que serve a interesses não republicanos, para dizer o mínimo). Essa foi a razão suficiente para o repórter ter a cabeça entregue como prêmio a possíveis anunciantes. O interesse público? A defesa da cidadania? O histórico ético, de manchetes exclusivas, de boas e importantes reportagens? Nada disso importou a A Tarde. Importou a satisfação a um grupo de empresários, a uma, duas ou três fontes insatisfeitas. Voltamos a tempos medievais, quando fontes e órgãos insatisfeitos mandavam em A Tarde, colocavam e derrubavam profissionais. Tempo em que o jornalismo era mínimo. 'Jornalismo é oposição. O resto é balcão de secos e molhados'. Essa é uma famosa frase de Millôr Fernandes. Dispensado o radicalismo dela, é de se ter em mente que jornalismo é uma atividade que incomoda. Defender o conjunto da sociedade, seu lado mais fraco, incomoda. É preciso que a direção de A Tarde entenda que a sustentabilidade do negócio jornal depende do seu grau de alinhamento com a sociedade civil (organizada e, principalmente, desorganizada). A força de um veículo de comunicação não está nos números de circulação ou de de anunciantes, mas nas batalhas travadas em prol dos direitos coletivos e individuais diariamente aviltados pelo bruto e burro poder econômico. Credibilidade é um valor que se conquista um pouco a cada dia e que se perde em segundos. E, graças a ações como esta, a credibilidade de A Tarde escorre pelo ralo a incrível velocidade, assim como sua liderança, assim como seus anunciantes. Sem jornalismo, o jornal (qualquer jornal) pode sobreviver alguns anos de anúncios amigos. Mas com jornalismo, um jornal sobrevive à história. Salvador, 8 de fevereiro de 2011."