Não penso que exista "crise imobiliária", o que existe é o insaciável desejo do capital de se realizar, gerando lucros, nesse caso sobre a necessidade de moradia da população. Com apoio do Estado, que lhe concede incentivos e empréstimos, as empresas de construção avançam sobre todos os terrenos disponíveis, depois sobre as casas e recentemente também sobre pequenos prédios, como um edifício demolido na Rua Grão Mogol, Bairro do Carmo (vizinho ao referido Sion), onde deverá ser erguido um arranha céu. Favelas e vilas ocupam terrenos hoje nobres, que antes não interessavam ao capital, mas agora são cobiçados. O que decide se favelas serão derrubadas para construir edifícios, bem como se uma mina extinta se tornará novo loteamento na zona sul ou um parque, é a questão central da política no capitalismo: a quem serve o prefeito? Aos empresários ou ao povo? A quem serve a Câmara de Vereadores? A interesses particulares ou a interesses coletivos? O artigo abaixo, numa abordagem típica de acadêmicos, mas acadêmicos que reconhecem o lado certo, denuncia essa situação, que leva a cidade cada vez mais ao caos em que se encontra hoje. A referida matéria do jornal O Tempo é um exemplo de quem está do outro lado. Pode ser usada na academia também para uma aula da atuação da "grande" imprensa como porta-voz dos interesses empresariais particulares, numa troca de favores: os jornais fazem propaganda das empresas e estas anunciam nos jornais. O leitor é como o morador pobre: fica de fora de ação entre amigos.
Do blog Praça Livre BH.
O despejo de pobres não é solução para a crise imobiliária
Por Ananda Martins, Cíntia Melo, Elyza Cyrillo, João Carneiro, Lorena Figueiredo, Luiz Eduardo Chauvet, Marcos Mesquita (*)
O Jornal O Tempo publicou no dia 26 de janeiro do presente ano matéria intitulada "Belo Horizonte tem apenas 20 mil lotes vazios para obras", tendo como objetivo apontar a escassez de áreas vagas para empreendimentos imobiliários na cidade de Belo Horizonte. Uma das causas apontadas pela matéria é a invasão de determinadas áreas por populações de baixa renda, problema exemplificado com a situação da Vila Acaba Mundo, pequena favela localizada no bairro Sion, uma das áreas mais nobres da cidade, e, por isso, muito visada pelo mercado imobiliário.
Contudo, a matéria desconsiderou que a ocupação citada possui respaldo na ordem jurídico-urbanística brasileira, que tem como figura central a função social da propriedade, constitucionalmente prevista. A Vila Acaba Mundo encontra-se consolidada há mais de seis décadas, destinada para a moradia de mais de 400 famílias em vulnerabilidade social, sendo este direito, inclusive, um dos direitos sociais elencados no rol do artigo 6º da nossa Constituição Federal e protegido internacionalmente por tratados dos quais o Brasil é signatário.
Muito pesar causa a constatação de que o ponto de vista do autor privilegia os interesses econômicos e financeiros do mercado imobiliário em franca expansão na capital mineira, a despeito de direitos fundamentais exercidos por pessoas economicamente desprivilegiadas, cujas histórias misturam-se com o crescimento dos bairros do entorno. Cumpre ressaltar que uma ocupação somente se consolida em áreas nas quais a propriedade não cumpra sua função social, como é o caso citado, em que a suposta invasão, somente agora, décadas depois de se estabelecer, recebe pressões para que sucumba a outros interesses que não o de moradia popular.
A ocupação foi iniciada em meados de 1950, com a instalação da Mineradora Lagoa Seca, que implementou, desde então, um projeto de moradia para os trabalhadores provenientes do interior. A partir da década de setenta, o número de moradores no local tornou-se mais significativo. Ao longo deste tempo foi-se desenvolvendo uma história de vida, não somente de cada morador, mas, principalmente, da comunidade, criando uma identidade coletiva catalisada pelo local de vivência.
Apesar de o senso comum indicar que o único tipo de capital existente ser aquele relacionado aos valores monetários, muito importante ressaltar que este não pode se sobrepor a outro tipo de capital, o capital social, conceituado pela professora Miracy Gustin. Em linhas gerais, o capital social se constitui a partir das relações entre os indivíduos, possibilitadas pelo pertencimento a uma mesma comunidade e, neste sentido, a manutenção e construção coletiva do espaço onde se vive é fundamental para sua perpetuação.
Em 1988, nossa sociedade participou de um movimento muito importante, findo o qual tivemos promulgada uma das mais avançadas cartas de direitos do planeta, na qual valores como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e princípios como o da dignidade da pessoa humana se tornaram centrais para a sociedade que queremos construir. Todos nós fazemos parte deste pacto, inclusive o mercado imobiliário, que não pode se furtar a honrar o compromisso democrático estabelecido.
(*) Integrantes do Projeto Regularização Fundiária Sustentável na Vila Acaba Mundo, do Programa Pólos de Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).