Presidenta Dilma fez um discurso impecável no Congresso. No que prestei atenção, se nada me escapou, ela falou de todas as áreas de governo, com definições claras de propósitos, reverenciou Lula, o povo e seus companheiros de 68 que tombaram (no momento mais emocionante) e ainda fechou citando Guimarães Rosa (citação óbvia, não é preciso ter lido Grande Sertão para fazê-la, mas apropriada). Agora é ver o governo.
Lula me surpreendeu, e Dilma? Se continuar Lula está ótimo, mas ela não é Lula, não tem o carisma nem o talento para a negociação que o ex-sindicalista tem. Dilma tem outras qualidades, que conquistaram Lula e que deverão ficar mais evidentes para os brasileiros. Lula fez o melhor governo capitalista que o Brasil já teve. Capitalismo é crescimento econômico com muito lucro; quando é melhor, vem acompanhado de distribuição de renda e benefícios sociais. Foi o que Lula fez. É assim que se entende o lema do seu governo: "um país para todos". Todos: os banqueiros, os industriais, os agroexportadores, mas também os trabalhadores, os sem terra, os desempregados, os pobres, os miseráveis. Os ricos ficaram mais ricos, os pobres ficaram menos pobres.
Como será o governo Dilma? Manterá a mesma sensibilidade social? Dilma tem uma história de esquerda que Lula não tem, uma trajetória mais radical, mas uma trajetória de classe média. Nós, belo-horizontinos, temos exemplos de políticos de classe média que pegaram em armas para derrubar a ditadura e mais tarde, no governo, fizeram acordos espúrios e adotaram políticas neoliberais. Dilma parece estar acima dessas figuras menores da nossa política. Seu discurso é uma espécie de declaração de princípios coerente. Dois pontos chamam atenção: as menções à reforma política e à reforma tributária. Pretenderá a presidenta fazê-las na primeira hora? Dois outros pontos aparentemente continuarão não recebendo a atenção que merecem, talvez porque não seja possível realizá-los no capitalismo: a educação fundamental pública de qualidade em tempo integral para todas as crianças e adolescentes e a conservação do ambiente como referência para a economia. O certo é que estamos começando esta semana uma nova fase no país.
A posse de Dilma Vana Rousseff foi tão ou mais emocionante do que a posse de Lula, em 2002. Esses oito anos separam a esperança juvenil da maturidade responsável. Para as gerações que nasceram nas década de 1940, 1950 e 1960, o combate à ditadura foi feito com idealismo e o desejo de criar uma sociedade nova, socialista. Muitos tombaram nessa luta – aqueles que Dilma reverenciou. Outros sobreviveram, mas se perderam no caminho. Outros mais perderam os ideais, se tornaram práticos, alguns bem-sucedidos empresários, reverenciadores do deus capital. Os melhores – como Franklin Martins e Dilma – sobreviveram com integridade moral.
Quando Lula assumiu o governo, aquela catarse que tomou conta dos melhores corações era a realização tardia de um desejo de derrubar a ditadura e implantar uma ordem social justa e democrática, desejo frustrado na derrota das diretas já!, na morte de Tancredo Neves, na derrota de Lula para Collor e nos dois governos FHC. Àquela altura, todos sabiam que nenhum socialismo viria neste país continental, mas Lula era a última esperança de não nos tornarmos cínicos, vendo sonhos se transformarem em realidades cruéis.
A expectativa que cercava o governo Lula era: será mais uma decepção? Num determinado momento, parecia que estávamos condenados a uma vida de frustrações, mas eis que Lula resiste, não tomba, se impõe, se reelege, se agiganta e faz, no seu segundo mandato, num crescente de sucessos surpreendentes, o melhor governo que a imensa maioria dos brasileiros vivos conheceu. Inaugura uma novidade na história do país: a democracia. Não é só porque respeitou a liberdade de expressão como nenhum outro presidente, tendo a "grande" imprensa a atacá-lo implacavelmente, que Lula foi o mais democrata dos presidentes brasileiros. É também, e principalmente, porque democracia é o sistema político dos iguais, e nenhum presidente antes dele foi um "igual". O presidente capaz de inaugurar a democracia no Brasil precisava ser um homem que veio das classes trabalhadoras e não traiu sua origem.
O sucesso do governo Lula dá aos brasileiros essa nova dimensão, esse novo paradigma, como gostam de falar os acadêmicos: o Brasil agora é um país das pessoas comuns, para as pessoas comuns. Depois de Lula, aquela máxima "Você sabe com quem está falando?" não faz mais sentido. Com Lula, o brasileiro aprendeu que o que vale não é o dinheiro, nem o título, nem a cor da pele, nem a origem social. Se um migrante nordestino, ex-operário, que só cursou o ensino fundamental e nunca teve posses foi o melhor presidente do país, todos nós podemos, todos nós somos iguais.
Lula e seu governo são o modelo brasileiro de democracia. Porque é com exemplos, muito mais do que com palavras, que se ensina. Lula pode ser um pai para os brasileiros pobres, mas é um pai criado na senzala, um igual, não é um pai bonzinho que sai da casa grande para proteger os humilhados e ofendidos. Dilma é diferente de Lula – porque veio da classe média, porque é idealista, porque pegou em armas contra a ditadura. Em Lula as ideias – inclusive as piores – vêm da necessidade, em Dilma as ideias vêm do desejo. O governo Lula tem uma força simbólica extraordinária, que vai muito além dos ideais dos jovens socialistas da classe média, como Dilma. Lula mostrou que o homem do povo é capaz, que a mediocridade das elites esconde mesquinharias de classe. Só o povo é capaz de fazer um país melhor – para o povo, porque para as elites o país nunca foi ruim.
A emoção que a posse da presidenta Dilma provoca é diferente: nossa esperança não se frustrou, o Brasil é melhor hoje, graças ao povo e seu melhor representante, elevado à condição de presidente. Trata-se agora de não retroceder, de construir uma nação sobre as novas bases que Lula inaugurou. Fomos capazes de vencer a primeira batalha – a da eleição. Dilma foi eleita e tomou posse. O poder conquistado pelo povo nesta democracia que pode agora ser chamada assim foi consolidado. O desafio de Dilma é similar ao de Lula, embora diferente: mais que a capacidade da mulher, ela precisa demonstrar que a geração de 68 não traiu seus ideais – e talvez para isso ser mulher seja uma vantagem.
Dilma precisa ao mesmo tempo governar com competência e idealismo. Precisa demonstrar que os ideais socialistas que na juventude a lançaram na política são factíveis e capazes de criar um país melhor. Administrar o capitalismo com competência, mas sem cinismo; governar com idealismo, mas com segurança, reafirmando a democracia que Lula inaugurou e aprofundando os princípios de igualdade e fraternidade, capazes de tornar o Brasil e o mundo melhores. Seu sucesso será o sucesso da democracia e do povo brasileiro.
Lula demonstrou que o melhor Brasil vem do povo. Dilma precisa mostrar que o Brasil que vem dos ideais populares é melhor.