Paulo Moreira Leite é um ex-trotskista interessante.
O trotskismo é o que há de mais nobre no marxismo do século XX.
Uso "nobre" nos dois sentidos que a palavra sugere: superioridade intelectual e superioridade de classe.
O trotskismo atraiu, especialmente no Brasil, muita gente da elite.
Mas atraiu também gente para quem o abc do stalinismo era muito rasteiro.
O trotskismo, nascido da reação de Leon Trotski aos rumos da Revolução Russa sob o comando ditatorial de Stalin, foi uma espécie de esperança para a revolução socialista que degringolou ao longo do século XX.
Trotski e Stalin disputaram a herança de Lênin, isto é, a chefia política da URSS depois que o líder inconteste da Revolução morreu, em 1924.
Trotski, ao contrário de Stalin, era um gênio, um escritor cuja leitura continua interessante, dono de uma vasta obra. Foi um caso raríssimo na história de homem de ação -- basta dizer que foi presidente do principal soviete russo e organizador e comandante do Exército Vermelho, que garantiu a vitória da revolução -- e intelectual brilhante ao mesmo tempo.
Quando ninguém via ainda o nazismo como uma ameaça, ele já dizia o que estava por vir.
Todos os passos que os comunistas -- fiéis a Stalin -- deram para combater Hitler ele propôs com muitos anos de antecedência.
Enfim, é um desses sujeitos ignorados oficialmente pelo que representa: foi e é ainda muito perigoso.
O trotskismo, no entanto, não deu em nada. Ou melhor, deu só em grupelhos sem influência importante sobre os trabalhadores, depois que Trotski foi assassinado a mando de Stalin, no exílio no México, em 1940, ao 60 anos.
Pior: o trotskismo tem uma tradição de gerar reacionários. Muitos jovens trotskistas se tornaram velhos ferrenhos anticomunistas, anti-socialistas, anti qualquer coisa que seja progressista.
Um exemplo clássico é Paulo Francis.
Este outro Paulo foi libelu na juventude, a principal tendência trotskista dos anos 70, que teve papel fundamental no renascimento do movimento estudantil, principalmente em São Paulo, na USP.
Libelu era a simplificação do nome do grupo estudantil: Liberdade e Luta. O que mais chamava atenção na Libelu, para os universitários da época, além da aparência bonita e saudável dos seus rapazes e moças (jovens da elite paulistana), era sua confiança de que a ditadura estava para cair, que o pior tinha passado e por isso não devíamos ter medo de gritar "Abaixo a ditadura!" outra vez, nem de sair às ruas.
O movimento estudantil de 1977, que, como soe acontecer, abriu as portas para o movimento operário, do qual emergiu Lula no ano seguinte, deve muito a Liberdade e Luta.
E Libelu tirava sua confiança, exposta em discursos de brilhantes oradores, nas assembleias estudantis, da análise de conjuntura proporcionada pelo trotskismo, que olhava para o mundo inteiro ao traçar sua política, não só para o Brasil, pois a revolução operária -- iminente, inevitável -- seria mundial, como morreu proclamando Trotski, não uma revolução nacional...
PML foi um libelu na juventude e vendeu o jornal O Trabalho, o órgão da sua tendência, antes de virar jornalista e andar pelos veículos da "grande imprensa burguesa", trabalhando para os patrões, vendendo ideias reacionárias, como tantos outros jornalistas comunistas na juventude.
O que o distingue hoje é ter retornado, senão aos ideais pelo menos à dignidade da juventude -- se é que algum dia deixou de tê-la.
Sua posição diante do julgamento do "mensalão", manifestada em artigos lúcidos como este, ao contrário de outros ex-trotskistas que se venderam à Globo, é exemplar.
Não por se portar como trotskista, mas como jornalista.
Da revista Istoé.
A lição dos embargos
Paulo Moreira Leite
O resultado dos embargos infringentes confirma aquilo que era possível saber há muito tempo. Se os réus da AP 470 tivessem tido direito a um julgamento de acordo com os fundamentos do Direito, quando todos têm acesso a pelo menos um segundo grau de jurisdição, o resultado teria sido outro.Iludidos por uma cobertura tendenciosa dos meios de comunicação, que fizeram um trabalho faccioso, como assinalou mestre Jânio de Freitas há dois anos, muitas pessoas podem estar até inconformadas com o resultado. Vão reclamar pelos bares, balançar a cabeça em tom de reprovação. Errado.
Tradicional direito dos regimes democráticos, um segundo julgamento oferece, a quem foi condenado, a chance de ser examinado por outro tribunal. Outros juízes, outros olhares. Outras provas e outras testemunhas. Quem reclama do voto de dois juízes novos deve ter em mente que, num novo julgamento, haveria onze juízes novos.
Deu para entender? Eu acho que o resultado final corrigiu algumas injustiças, poucas.
Só foi possível debater as condenações que haviam obtido quatro votos em contrário, isto é, que eram tão obviamente fracas que na primeira fase foram rejeitadas por 40% de um plenário que muitas vezes tinha apenas 10 juízes. Se o STF tivesse desmembrado o julgamento, o que fez no mensalão PSDB-MG, o saldo teria sido outro, obviamente. Todos teriam direito a um segundo exame. As chances de demonstrar sua inocência -- direito de todo réu -- seriam maiores.
Foi por isso que Joaquim Barbosa fez o possível para impedir os embargos.
O tom, nos debates sobre infringentes, era de ameaça e alerta.
Olha só: Joaquim não só tentou impedir o debate sobre embargos. Antes, conseguiu impedir que os próprios juízes debatessem o inquérito 2474, que tem indícios e testemunhos que oferecem uma visão mais equilibrada e mais completa do caso, o que teria sido de grande utilidade para um debate com mais fundamento sobre as provas.
Guardo na memória, conservada no Youtube, uma intervenção indignada de Celso de Mello exigindo que o plenário tivesse acesso ao inquérito sigiloso. Quem for a internet verá Joaquim, mãos nervosas, voz fraca, frases saindo com dificuldade, dizendo que não era conveniente, não havia grandes novidades e, importantíssimo!, gravíssimo!, iria atrasar a decisão, que não poderia ocorrer no ano 2012 -- aquele, nós sabemos, em que haveria eleições municipais.
As provas usadas no “maior julgamento da história” eram frágeis demais para penas tão fortes. Escrevi isso aqui em 2012, depois de assistir ao julgamento pela TV. Ninguém tinha noção, então, das falhas e incoerências muito maiores, que temos hoje. A maioria dos analistas não queria se comprometer. Não debatia o mérito das acusações. Queria discutir o ritual, o processo.
Sabemos, agora, que não houve desvio de recursos públicos – e que isso não foi uma descoberta recente, mas estava lá, nos autos da AP 470, em auditorias, documentos e testemunhos de dezembro de 2005. Imagine você: seis meses depois da entrevista de Roberto Jefferson era possível saber que havia muito erro naquilo que dizia a denúncia.
Também sabemos de outra falha essencial. Acreditando, ou não, que eram recursos públicos, também foi possível ter certeza de que as contas batiam e que era difícil demonstrar – tecnicamente – que houve desvio.
Analisando um período de cinco anos de campanhas da DNA, que incluíram dois anos de governo FHC, três de governo Lula, a Visanet, proprietária assumida do dinheiro, como explicou nas inúmeras vezes em que foi solicitada a se manifestar, notou uma falha de R$ 6 milhões num total de R$ 151 milhões – uma diferença que depois seria explicada pela agência. Mesmo assim, estamos falando de R$ 6 milhões. Se for um desvio, equivale a 4% do dinheiro. Lembra do julgamento?
Diziam que o desvio fora de R$ 73,4 milhões, uma conta de chegar, mal feita e improvisada. Descobriram que essa fora a verba para a DNA em quatro anos e concluíram: 100% tudo foi roubado. Não provaram, não fizeram contas, não demonstraram. Numa visão desinformada, amadora, da situação, imaginaram que as pessoas abriam o cofre e pegavam o que tinha dentro. Não dá para acreditar mas foi isso o que correu.
Ganharam no grito, que os meios de comunicação não se deram ao trabalho de conferir.
Perderam -- um pouco -- agora.
É por isso que a perspectiva, agora, é de obter uma revisão criminal do julgamento. Ou seja: um segundo julgamento. É uma via estreita e difícil, como disse com muita razão o ministro Marco Aurélio de Mello.
A íntegra.