O fato mais importante da ditadura que governou o Brasil de abril de 1964 a março de 1985 foi sua eficácia. Direi adiante porque a ditadura foi eficaz. Antes, porém, quero citar os erros que não podem mais ser cometidos. O primeiro deles é que a ditadura foi ditadura, sem adjetivo. A participação civil no golpe e na ditadura foi sempre evidente e fundamental.
Não falo da marcha da família que
mobilizou a classe média, mas dos empresários, veículos de
comunicação, políticos e tecnocratas que financiaram o golpe,
participaram do golpe, incentivaram o golpe, pediram o golpe.
Falo
dos veículos de comunicação, dos políticos, dos tecnocratas e dos
empresários que financiaram, apoiaram e participaram da perseguição
aos opositores do regime.
Falo dos tecnocratas, dos empresários,
políticos e veículos de comunicação que se beneficiaram da
ditadura e participaram dos governos dos presidentes militares.
Falo
dos políticos, empresários, veículos de comunicação e
tecnocratas que sobreviveram à ditadura e continuam participando da
vida econômica, social e política brasileira, gozando de poder e
sem jamais terem sido punidos pelos crimes que cometeram – crimes
contra indivíduos, de abuso de poder, tortura, sequelas, morte,
mutilação e sumiço de corpos, e crimes contra a sociedade, de
ruptura da ordem democrática, implantação de um regime de terror e
desrespeito aos direitos constitucionais.
Por terem liderado sua proclamação, os militares brasileiros permaneceram durante praticamente um século como uma espécie de "defensores da República", manifestando-se em sucessivos golpes e tentativas de golpe, até, finalmente, tomarem o poder e o conservarem durante 21 anos, dispensando intermediários – isto é, "civis" –, como de outras vezes, e elegendo entre eles mesmos os presidentes da ditadura.
Destes fatos se depreende também uma das características mais importantes do período
histórico atual, iniciado no governo de Tancredo-Sarney: pela
primeira vez na história republicana, depois de quase um século
(1889-1985), os militares estão distantes da política, quietos nos
quartéis, limitando-se às suas funções constitucionais e à
defesa de interesses corporativos, sem apoiarem iniciativas
golpistas.
É um fato auspicioso, que precisa ser reconhecido, pois
representa uma democratização efetiva do país, com perspectiva
duradoura, pois os golpistas brasileiros nunca foram capazes de tomar
o poder sem apoio das Forças Armadas, em especial do Exército.
Ao se retirar da "guerra interna", o Exército brasileiro foi, digamos assim, destruindo pontes para impedir que o inimigo o alcançasse. As principais "pontes" foram a eliminação do PTB, a anistia e a derrota da emenda das eleições diretas.
A ditadura aceitou um Tancredo e ganhou de presente um Sarney, homem do regime desde o primeiro momento. Recuou sem grandes perdas nos seus efetivos e garantindo que o "inimigo" não voltasse a ocupar as posições que tinha antes do golpe.
Era um inimigo enfraquecido. Uma vez no poder, a ditadura caçou e destruiu seu primeiro inimigo: Jango, o PTB, os getulistas, os sindicatos, os sindicalistas, os comunistas, o PCB – os trabalhadores. Foi o primeiro golpe.
O segundo golpe veio em 1968, com a decretação
do AI-5. Não foi mais contra os trabalhadores, que já estavam
desarticulados e enfraquecidos; em dezembro de 1968 o golpe foi
contra as classes médias, lideradas pelos estudantes, que, a partir
do primeiro golpe, perceberam, uns imediatamente, outros mais
lentamente, que tinham sido enganados.
Os cinco anos percorridos
pelo Brasil entre o primeiro e o segundo golpe formam um período de
mobilização crescente das classes médias, um despertar radiante e
combativo dos intelectuais, jornalistas, dos artistas, dos
universitários. São estes – ou os melhores destes, os mais
combativos, os mais idealistas – os brutalmente aniquilados
a partir do AI-5, quando optam por se armar, como o inimigo, e lutar
uma luta desigual na qual não têm nenhuma chance.
De quebra, a ditadura legou ao país duas instituições símbolos do autoritarismo e que continuam cumprindo suas funções antidemocráticas ainda hoje – uma manipulando a opinião pública, outra reprimindo os trabalhadores: a Globo e a Polícia Militar.
Despreparada para as funções que lhe são atribuídas, a PM cumpre hoje, na "democracia", o papel que na ditadura foi principalmente do Exército: perseguir e eliminar permanentemente os movimentos populares, os "comunistas", os pobres, os trabalhadores.
À Globo, líder dos veículos de comunicação protofascistas, que prosperou durante a ditadura e atuou como seu porta-voz, cabe deformar as informações e influenciar a população, com sua infinidade de canais de televisão e rádio, jornais, revistas etc.