Até o começo da Grande Guerra, 99 anos atrás, a Inglaterra foi a dona do mundo, a pátria do capitalismo, o berço do qual o capital partiu para conquistar a Terra; era um império com colônias em todas as partes do planeta, apesar de ser uma pequena ilha. A Alemanha era uma potência emergente, que queria tomar espaço à Inglaterra e esta não podia ceder, sob pena de perder a liderança internacional. Foram à guerra e a Inglaterra, mesmo vitoriosa, decaiu, enquanto a Alemanha, derrotada, foi destruída. Começou então o imperialismo dos EUA, país que entrou na guerra já no final, ao lado da Inglaterra, e que nunca teve seu território invadido, só mandou soldados e produziu armas e munições, depois emprestou dinheiro para financiar a reconstrução da Europa.
É a triste história do século XX: a Europa, que até então tinha sido o centro da história contemporânea, esfacelada, a Inglaterra em decadência, a Alemanha se reerguendo com o nazismo e uma nova guerra, ainda maior e pior, ao final da qual todos os países do bloco capitalista (havia ainda a União Soviética, cujo Exército Vermelho derrotou os nazistas e ocupou o Leste da Europa) se tornaram vassalos do império norte-americano, sempre em expansão, sempre lutando longe do seu território, nunca destruído pela guerra.
Para não haver dúvida de quem mandaria no mundo desde então, os EUA despejaram duas bombas atômicas no Japão, gerando os maiores horrores de um século repleto de outros horrores: dezenas de milhões de mortos em duas guerras, prisioneiros de guerra nazistas mortos em câmaras de gás, bombas de napalm queimando populações vietnamitas, ataques terroristas, pacifistas queimando seus próprios corpos em protestos etc.
O mundo não voltou ao grau de civilização que possuiu sob o império britânico, até um século atrás. Desde então não passa um dia sequer sem que os EUA esteja metido em uma guerra -- sempre bem longe do seu território; enquanto existiu o bloco soviético, a desculpa americana era proteger o "mundo livre" da ameaça comunista -- e agora? Não importa a justificativa porque ela é só uma desculpa para os EUA manterem seu império, para suas empresas controlarem os recursos naturais e sua principal indústria, a indústria bélica, desovar sua produção mundo afora. No século XXI, como no século XX, o império americano se mantém produzindo guerras e derramando sangue.
Os vassalos americanos, especialmente os ingleses, sempre os acompanharam, mandando tropas, repetindo o discurso padrão, invariável, seja feito por políticos republicanos, seja por democratas. Por isso a decisão do parlamento britânico é interessante, pode ser sinal de novos tempos.
Da Agência Carta Maior.
A revolta dos vassalos
Tariq Ali
Alegrai-vos. Alegrai-vos. A primeira corrente de vassalagem foi quebrada. Eles vão arrumá-la, sem dúvida, mas festejemos a independência enquanto dura. Pela primeira vez em cinquenta anos, a Câmara dos Comuns votou contra a participação numa guerra imperial. Consciente da profunda e persistente oposição no país e no aparelho militar, os deputados decidiram representar a vontade do povo.
Os discursos dos três líderes foram quase patéticos. Nem a emenda da oposição nem a proposta de guerra conseguiram reunir o apoio suficiente. Foi tudo o que precisávamos. Os cerca de trinta dissidentes conservadores que tornaram impossível a participação britânica, votando contra a sua liderança, merecem o nosso agradecimento. Talvez agora a BBC comece a refletir a opinião popular em vez de agir como a voz dos belicistas.
Tendo em conta o estatuto internacional britânico como comparsas de Washington no derramamento de sangue, esta votação terá um eco global. Nos próprios Estados Unidos, a votação em Londres fará crescer a inquietação, já bem evidente nos briefings off-the-record à imprensa dizendo que não existem provas sólidas que liguem o regime ao ataque com armas químicas. "O quê?", perguntarão entre si os cidadãos norte-americanos. "O nosso seguidor mais leal está a desertar nas vésperas dos ataques?"
A íntegra.