A médica Rafaela Alves Pacheco pediu desligamento da diretoria do Sindicato dos Médicos de Pernambuco, que ataca o programa Mais Médicos e persegue médicos estrangeiros. Entre o corporativismo e a medicina, ela optou pela medicina. Justificou sua atitude nesta carta.(No Rio Grande do Sul, presidente do Sindicato dos Médicos ataca os médicos cubanos, mas mandou dois filhos estudarem medicina lá -- e na época só tinha elogios para a medicina cubana.)
Do Pragmatismo Político.
Recife, 29 de agosto de 2013.
Caríssimos e caríssimas,
Há tanto o que falar e me pego subitamente sem saber por onde começar. Então, me permito começar pelo começo.
Muitos(as) de vocês conhecem boa parte de minha história. Sou cearense,
nascida em Fortaleza, filha primogênita de um casal de funcionários
públicos: minha mãe, sertaneja, professora, formada em Pedagogia. Meu
pai, serrano, terminou o segundo grau, mas não fez nenhum curso
superior.
Os dois vieram de famílias simples e de proles grandes. Meu pai tem
dez irmãos. Minha mãe, 14. A vida deles nunca foi muito fácil,
especialmente a de minha mãe. Meu avô materno fez uma morte súbita ainda
jovem e minha avó (que todos vocês bem conhecem, por repetidas vezes eu
citar seus sábios dizeres em reunião) precisou redobrar seus trabalhos
com costura e bordado para conseguir a difícil tarefa de educar seus
filhos. Educação essa que lhe parecia sagrada e da qual não abria mão,
até porque pessoalmente nunca a teve.
Sou a segunda médica da minha família. Tenho um tio materno médico
pediatra. Sei na carne as dificuldades que minha família e eu passamos
para que esse meu sonho acontecesse. Não ser nascida em família
abastarda ainda castra os sonhos de muita gente nesse país.
Eu consegui seguir o rumo que desejei, mas tenho a clareza que muitos
não o fizeram, não porque não souberam desejar. Ou porque são "menores", "piores" ou "mais fracos". Não porque não foram "persistentes". Há todo um sistema que retroalimenta e culpabiliza o
inconsciente das massas com essa falsa certeza. Muitos não possuem a
possibilidade de escolher seus caminhos de forma livre porque não
tiveram oportunidade. Porque o jogo está todo errado. Porque no mundo em
que vivemos não é suficiente ser. É preciso ter.
Nesse cenário há duas escolhas: a primeira, manter-se no estado das
coisas e seguir no rumo das ondas, aprendendo a nadar e evitando o risco
de se afogar. E há uma segunda escolha, mais perigosa, mais tênue e
instável, que é a de ousar, de remar contra a maré. Eu escolhi há muitos
anos, em nome dessas tais e tantas pessoas mais humildes e sem rumo que
dedicaria meu suor, minha força, minha cognição e meus dias nessa
segunda proposta, de modo a permitir que tivéssemos um dia, um mundo de
fato partilhado entre todos e todas. É ideológico. É pessoal, é
político. É existencial.
Assumi e assumo diariamente os riscos e contradições dessa escolha e
construo minha trajetória absolutamente balizada por essa convicção.
Alguns chamam isso de paixão. Para muitos pode parecer piegas,
insensato. Pode parecer ridículo, obsoleto. Utópico demais. Mas acredito
que somos livres para optar, assumindo a responsabilidade que todo
poder nos proporciona. Inclusive o poder de pensar.
Minha escolha profissional dialoga diretamente com essas questões. E
desde estudante, construí caminhos de protagonismo tanto de cuidado com o
outro, como de cuidado com o mundo. Comecei a fazer atividades
comunitárias, a pisar na lama e a sentir o cheiro do Brasil ainda com
cara de menina, quando consolidei ainda mais esse pensamento. Não me
sinto seduzida pela pompa que a medicina desenhou ao longo de sua
história. Encanto-me é com a possibilidade de olhar no olho das pessoas,
de sentir o calor que elas passam, rir suas risadas, chorar seus
prantos, sejam ricas, sejam pobres. Tenham dentes na boca ou não. Eu
quero ajudar a produzir plenitude de vida para mim e para os que me
cercam, não necessariamente nessa ordem. Eu sou uma médica que gosta do
bicho gente.
Escolhi participar diretamente das entidades médicas há mais de três
anos, mas acompanho as posturas do Simepe há quase 13 anos. Vi, desde há
muito, um sindicato que se destacava por ser diferente.
Era diferente, porque apesar de fazer movimento de área, equivocada
construção histórica da organização dos trabalhadores que retroalimenta o "farinha pouca, meu pirão primeiro", não priorizava uma pauta
auto-centrada. Mesmo com todas as contradições e momentos específicos,
partilhava a pauta com a agenda de consolidação do SUS, com os demais
trabalhadores da saúde e se importava verdadeiramente em construir junto
com a opinião pública e sociedade.
Era diferente, porque se destacava regional e nacionalmente por ter
um discurso combativo sim, mas qualificado e construtivo. Protagonizou
grandes e belas lutas, tensionando importantes vitórias que extrapolavam
o umbigo da categoria. O Brasil inteiro sabia que o Simepe era
diferente, a entidade sempre foi procurada para opinar sobre um tudo.
Essa casa cresceu, vinha mudando de cara, mas há muitos anos prezou por
ser para além de uma entidade representativa de médicos. O Simepe fazia
movimento social.
Venho de uma geração nascida após a reabertura política brasileira.
Dei meus primeiros passos e fui crescendo junto com a redemocratização.
Costumo participar e construir por dentro os processos e, sendo
escutada, respeitada e bem vinda, topo inclusive os enfrentamentos. Pela
palavra. Pelo argumento. Mesmo com todas as divergências, topo discutir
e encontrar um denominador comum que possui um único norteamento e fiel
nessa balança: o bem estar das pessoas. A defesa da vida das pessoas.
Vim de seis anos de movimento estudantil, de mais seis anos de
medicina de família e comunidade, dois desses de medicina rural.
Participei e participo do movimento feminista, da reforma psiquiátrica,
do movimento de reforma sanitária. E esses capítulos da minha história
moldaram e moldam o que sou hoje. É por essa história que vivo, ela é
meu maior patrimônio. E é por ela que falo agora.
Sempre tive múltiplas diferenças e discordâncias com vocês. Na
verdade, com as entidades médicas como um todo. Nunca gostei de alguns
silêncios seletivos e de uma variedade de questões e posturas internas e
externas do movimento médico, ao meu ver bastante conservadoras. Nunca
me senti confortável com o corporativismo que coloca o bem estar do
médico em primeiríssimo lugar. Que escolhe calar, a falar. Mesmo que
isso custe o zelar pela boa medicina e pelo bem estar dos pacientes. E
que ajuda, por consequência, a manter uma inércia social que há mais de
500 anos corta e sangra os mesmos. A mesma gente brasileira de sempre.
A nossas concepções de missão dessa casa já eram, de saída,
diferentes. Entrei no Simepe para fortalecer a agenda do SUS, para
construir qualidade na medicina e para defender os bons médicos e suas
equipes. Essa sempre foi minha maior mobilização. Sempre fui muito
honesta com vocês quanto a essa diferença, nunca escondi essas
vicissitudes. Mas foi muito duro perceber o crescente dessas nossas
diferenças. Segui com meu espírito crítico chamando as partes a
pensarem, mantive-me falando mais internamente e calando mais
externamente, por respeito a esse grupo e as coisas que acreditei serem
ainda possíveis de serem construídas com vocês. Um silêncio caro, que me
faz sofrer horrores nesses últimos meses.
Mas infelizmente o que eu temia aconteceu. O esquentar dessa guerra
sangrenta, a agudização das dicotomias, a fervura apaixonada das
discordâncias ideológicas culminaram com o esbravejar uníssono e
inconsequente da categoria médica. Que se perdeu no discurso, que não
soube pautar as importantes e pertinentes considerações que trazia. Nada
além da raiva de nunca ter perdido antes. Não separou o joio do trigo,
os pleitos de direitos, dos de privilégio. Não soube ser generosa. Não
soube ser estratégica. A indignação de perder parte do seu histórico
biopoder é inaceitável para muitos, que preferem esperar na antessala da
nação, enquanto alguém mágico resolva (ou não) construir o tal país de
maravilhas que tanto merecemos. O Brasil precisa de mais.
As lideranças médicas optaram por abrir uma caixa de Pandora, que não
sei sinceramente se irão conseguir fechar. Dispararam uma onda e vem
perdendo de forma avassaladora a credibilidade social e colocando-nos,
todos, numa berlinda que nunca fiz por onde estar.
As máscaras seguem caindo e mostrando, a todo momento, a todo gesto,
quem realmente é quem. As pessoas nobres e toscas dos dois lados.
Porções de nobreza nas considerações de ambos os segmentos. Pessoas da
base e do governo azeitadas pela mídia e opinião pública em franco
maniqueísmo. Muito grito, muita indignação, muito desrespeito. Muito
ódio.
Definitivamente não funciono nesses termos. Não foi com isso nem pra
isso que vim a esse mundo. Sinto-me cada vez mais escanteada e menos
escutada nessa casa. Por mais que eu fale, argumente, persista, venho
assistindo ao ascenso de uma agenda fortemente corporativista e
conservadora por parte das entidades médicas e especialmente do Simepe.
Agenda essa que não me move, só me comove.
Enterrar o ministro da saúde e por consequência toda a atual política
de saúde do país e do SUS por conta da discordância quanto ao Programa
Mais Médicos não combina com minha história.
Assistir incólume a toda a perseguição e coação de pessoas
importantes pro SUS e pro Simepe por parte de uma base raivosa e
revanchista, sem absolutamente nenhum respeito e pronunciamento em
defesa dos mesmos por parte dessa diretoria não combina com minha
história.
Uma campanha de mídia que ataque frontalmente o SUS tratando-o como
um navio afundando ou um avião caindo e a comparação falada em rádio de
que médicos estrangeiros são "pernas-de-pau" na medicina não combina com
minha história.
Mas o que o Simepe fez na assembléia da última segunda feira 26 não
tem nome. Pelo que se consagrou chamar de ética e pela defesa dos
médicos, optou-se por perseguir, retaliar e atacar… médicos! Os maiores e
mais poderosos, xingados. Os menores, processados, podendo perder seus
registros profissionais. Porque ousam discordar. Convivo, trabalho e
milito há muitos anos com Rodrigo Cariri. Sei de sua história, de seu
valor, de sua coragem. E sei que vocês também sabem. Expor ele e quem
quer que fosse a essa situação vexatória por discordância política,
repito, não tem nome.
O dedo julgador da categoria médica acordou para apontar não omissões
de socorro, maus tratos aos os pacientes, desvios de verba do SUS,
escalas não cumpridas de plantão, gestores corruptos, cobranças
indevidas de procedimentos, relação incestuosa com a indústria
farmacêutica. O dedo apontou para quem topou discordar, quebrar o
feitiço. Autoritário, vertical, covarde. Inaceitável. Bem destoante de
tudo o que vi na história dessa casa até então.
E em sendo assim, com essa sequência de acontecimentos, não me resta
outra alternativa. Coloco hoje meu cargo de diretora de relações
institucionais do Simepe à disposição. Não me sinto representada nem
represento esse tipo de agenda e atitude.
Tenho a clareza que tentei de um tudo. Trabalhei e doei o meu melhor
para construir o bom trabalho, o bom debate e a boa política ao longo
desses três anos. Lutamos juntos por muitas coisas que julgo importantes
e aprendi a conviver e a ter amizade pessoal com boa parte de vocês.
Nossas diferenças não nos impediram de nos afeiçoarmos e permaneço tendo
afeto verdadeiro por muitos que aqui ficam.
Sei que uns lamentarão, outros comemorarão e outros sentirão alívio
com minha saída. De toda forma, agradeço a oportunidade de convívio e
aprendizagem. Aprendi muitíssimo com vocês. Espero ter cumprido o meu
papel. Espero, também que tenham a grandeza de fazer uma auto-crítica e
ajustar trajetória para lutarem a boa luta. Força e disposição sei que
não faltarão. E o SUS precisa demais da força de luta que o Simepe
sempre lhe ofertou.
Agradeço especialmente aos funcionários e funcionárias do Simepe que
sempre e tanto me acolheram. Meu carinho e meu desejo de boa sorte a
todos e todas.
Desculpem o prolongamento da carta. Sempre tanto a dizer.
Atenciosamente,
Rafaela Alves Pacheco.
Médica de Família e Comunidade
Militante em Defesa da Vida.