quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Pinheirinho, ainda: violência dos governos contra pobres é a mesma do século XIX

Excelente artigo de Nikelen Witer recupera a destruição do cortiço Cabeça de Porco, no Rio de Janeiro, então capital do Brasil, no começo da República. "Melhorar" (para os ricos) e "limpar" (retirando os pobres) as cidades brasileiras usando as forças policiais é uma velhíssima prática das elites brasileiras. As injustiças são esquecidas pela história oficial e aqueles que as promovem viram nome de rua. Quando se fala em "progresso" é nisso que a gente tem de pensar: que progresso é esse em que barbaridades continuam sendo cometidas na segunda década do século XXI?

Do Sul 21.
Lembrando o Cabeça de Porco em tempos de Pinheirinho
Nikelen Witer.
A lembrança da destruição do cortiço Cabeça de Porco, no Rio de janeiro de fins do século XIX, parece emblemática. Não estou a dizer que "a história se repete", aliás, tampouco acredito nisso. Contudo, os paralelos entre as duas situações são inevitáveis. Para que o leitor possa fazer uma ideia clara do que digo, reproduzo abaixo a narrativa do fato pelo historiador Sidney Chalhoub em seu excelente Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial.

"Era dia 26 de janeiro de 1893, por volta das seis horas da tarde, quando muita gente começou a se aglomerar diante da estalagem da rua barão de São Félix, nº 154. Tratava-se da entrada principal do Cabeça de Porco, o mais célebre cortiço carioca do período: um grande portal, em arcada, ornamentado com a figura de uma cabeça de porco, tinha atrás de si um corredor central e duas longas alas com mais de uma centena de casinhas. Além dessa rua principal, havia algumas ramificações com mais moradias e várias cocheiras. Há controvérsia quanto ao número de habitantes da estalagem: dizia-se que, em tempos áureos, o conjunto havia sido ocupado por cerca de 4 mil pessoas; naquela noite de janeiro, com toda uma ala do cortiço interditada havia cerca de um ano pela Inspetoria Geral de Higiene, a Gazeta de Notícias calculava em quatrocentos o número de moradores. Outros jornais da época afirmavam que
2 mil pessoas ainda habitavam o local. Seja como for, o que se anunciava na ocasião era um verdadeiro combate. Três dias antes os proprietários do cortiço haviam recebido uma intimação da Intendência Municipal para que providenciassem o despejo dos moradores, seguido da demolição imediata de todas as casinhas. A intimação não fora obedecida, e o prefeito Barata Ribeiro prometia dar cabo do cortiço à força. Às sete horas e trinta minutos da noite, uma tropa do primeiro batalhão de infantaria, comandada pelo tenente Santiago, invadiu a estalagem, proibindo o ingresso e a saída de qualquer pessoa. Piquetes de cavalaria policial se posicionaram nas ruas transversais à Barão São Felix, e outro grupo de policiais subiu o morro que havia nos fundos da estalagem, fechando o cerco pela retaguarda. (…) O Cabeça de Porco – assim como os cortiços do centro do rio em geral – era tido pelas autoridades da época como um "valhacouto de desordeiros". Diante de tamanho aparato repressivo, todavia, não parece ter havido nenhuma resistência mais séria por parte dos moradores à ocupação da estalagem. De qualquer forma, segundo o relato da Gazeta de Notícias, ocorreram algumas surpresas. Os esforços se concentraram primeiramente na ala esquerda da estalagem, a que estaria supostamente desabitada havia cerca de um ano. Os trabalhadores começavam a destelhar as casas quando saíram de algumas delas crianças e mulheres carregando móveis e colchões e tudo o mais que conseguiam retirar a tempo. Terminada a demolição da ala esquerda, os trabalhadores passaram a se ocupar da ala direita, em cujas casinhas ainda havia sabidamente moradores. Várias famílias se recusavam a sair, se retirando quando os escombros começavam a chover sobre suas cabeças. Mulheres e homens que saíam dos quartos 'estreitos e infectos' iam às autoridades implorar que 'os deixassem permanecer ali por mais 24 horas'. Os apelos foram inúteis, e os moradores se empenharam então em salvar suas camas, cadeiras e outros objetos de uso. De acordo com a Gazeta, porém, 'muitos móveis não foram a tempo retirados e ficaram sob o entulho'. Os trabalhos de demolição prosseguiram pela madrugada, sempre acompanhados pelo prefeito Barata. Na manhã seguinte, já não mais existia a célebre estalagem Cabeça de Porco."


Sidney Chalhoub parte desta história para reconstruir um importante período da história brasileira. Isso porque a destruição do Cabeça de Porco é apenas a emblemática ponta de um iceberg onde se podem ver não somente as mudanças urbanísticas e arquitetônicas das grandes cidades brasileira, mas também o processo de criminalização da pobreza, de seu tratamento como "sujeira", "lixo" e, numa época em que a medicalização avançava a passos largos, como "doença".
A íntegra.