quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O capitalista sem capital

Ou dono de "capital humano". O capitalismo se reinventa sem parar para sobreviver. Esta foi certamente uma das suas invenções mais bem-sucedidas nas últimas décadas: a transformação do trabalho (que tradicionalmente lhe fazia oposição dialética, seu "inimigo mortal", segundo o marxismo) em capital -- em aliado, portanto, ou "parceiro". Artigo luminoso sobre o que aconteceu e está acontecendo com uma parcela dos trabalhadores contemporâneos.

Do blog Escrevinhador.
Todo mundo vai virar suco
Por Carlos Alberto Dória
(...) Tudo começou no já distante ano de 1960, quando o economista Theodore Schultz, da Universidade de Chicago, escreveu um pequeno artigo, intitulado "Investimento em Capital Humano", que produziu uma grande polêmica entre economistas. Quarenta anos depois, as ideias de Schultz acabaram se espraiando por toda a sociedade e resumem o que se pensa modernamente sobre o papel do trabalho no capitalismo ultramoderno. (...) Schultz destruiu a noção clássica de "força de trabalho" e colocou em seu lugar as habilidades inatas ou adquiridas -- habilidades que não contribuíam da mesma maneira para a "riqueza da nação". Desapareceu, assim, a categoria "recursos humanos" das empresas. O que parecia uma conversa enfadonha entre economistas era, na verdade, uma revolução na economia política desde os seus fundadores: o capital deixava de ser visto como homogêneo, e o trabalho, que era a categoria oposta, passava a ser considerado capital ou, mais precisamente, "capital humano", que se materializa quando o capital "pega esse talento e consegue botá-lo na corporação". A revolução conceitual do "capital humano" demorou décadas para conquistar o mundo dos negócios, até que as teorias de administração, as empresas de consultoria, as revistas técnicas e tudo o que possa "fazer a cabeça" dos executivos se curvassem diante dela. Agora que ela se vulgarizou, a nova teoria faz com que os indivíduos se comportem como "capitalistas de si próprios" e, portanto, o consumo que signifique qualificação, diferenciação, sofisticação cultural, será considerado "investimento". É um novo modo de se ver e de ser visto pelo mercado. A "mudança" permanente, o aperfeiçoamento pessoal, o elogio dessa atitude, virou o mantra do nosso tempo, conforme López-Ruiz. Em outras palavras, "você é o seu projeto". Mas não se trata apenas de uma mudança subjetiva. Este novo "ethos", no qual o antigo trabalhador passa a se comportar como um átomo de "capital humano", fundamenta uma nova cultura empresarial, uma nova forma de exploração do trabalho. O primeiro grande passo foi a eliminação do "emprego". Os antigos executivos foram transformados em "sócios" das grandes corporações. Como diz um capitalista, "os acionistas investem dinheiro em nossas empresas, os empregados investem tempo, energia e inteligência". Junto com as participações nos ganhos do capital, foram socializados também os riscos da atividade capitalista. Eles já não ganham "altos salários", mas parcelas do lucro quando este resulta da sua atividade. Às vezes -- como nos Estados Unidos, no escândalo do caso Eron ou, na Itália, no caso Parmalat -- falsificam lucros para ganhar mais. Entre os que trilham o trabalho honesto, vê-se uma corrida frenética para se qualificar sempre mais e mais. O que antes era acesso à educação se transformou em "capacitação" para o trabalho ultracompetitivo do dia-a-dia. A própria vida privada é administrada como se fosse uma "empresa" que se integra à corporação na busca do lucro. Ir a um concerto, conhecer novas pessoas, saber discorrer sobre vinhos -- tudo faz parte do bom desempenho dessa "empresa" nova, que só é competitiva se apresenta uma alta dose de "capital humano", isto é, conhecimentos e habilidades de "ganhadores". Um dia, tudo isso acaba. Jovens mais "competitivos" aparecem por todos os poros do mercado para deslocar os mais velhos. Mas o que se segue não é o "desemprego", pois já não havia o "emprego". É apenas uma sociedade entre capitais que se desfaz. E, aí, mediante uma série de tentativas e erros, o trabalhador das corporações busca inaugurar a sua "segunda carreira". A metáfora desta "segunda carreira" é o famoso caso do início dos anos 80 do século passado, quando um engenheiro desempregado abriu uma lanchonete na avenida Paulista, em São Paulo, e a batizou com a frase que resumia a sua vida: "O engenheiro que virou suco", definindo assim uma personagem que foi explorada pelo filme "O homem que virou suco", de João Batista de Andrade. Mas, antes de "virar suco" o trabalhador tentará virar consultor, escrever livros, enfim, fazer "render" aquelas suas velhas habilidades que o mercado acabou de lhe dizer que já não valem nada. Como "terceirizado", tem uma empresa que é contratada para serviços específicos. É remunerado pelo "tempo total" trabalhado e só por ele, sem qualquer um dos velhos custos trabalhistas (previdência, seguro saúde, vale-refeição etc.).
A íntegra.