A primeira e as últimas frases do artigo abaixo dizem tudo sobre o Delfim Netto pós-ditadura.
Por que o ministro da economia mais importante da ditadura, o comandante do "milagre" que fez o país crescer 10% ao ano com o arrocho salarial só possível na ditadura, o tecnocrata mais querido e mais poderoso dos militares, tornou-se também amigo dos governos civis que vieram depois?
O Delfim da ditadura foi o oposto do industrial alemão de "A lista de Schindler". É como se estivesse dizendo: "os militares me ajudaram muito, mas eu não fiquei sabendo de nada".
Quanta ingenuidade no homem que assinou o AI-5, sublinhando que talvez "não fosse suficiente" para o país "realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez" e defendeu que o Conselho de Segurança Nacional, que "decidiu" o AI-5, desse ao general presidente Costa e Silva "a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente necessárias" (Elio Gaspari, A ditadura envergonhada, página 336).
Em outras palavras: ele considerava a ditadura total "absolutamente necessária" para o crescimento que ele queria fazer.
O AI-5, que implantou a "ditadura escancarada", possibilitou a liquidação da classe média que se levantou contra a ditadura entre 1964 e 1968 e foi sustentado pela recuperação da economia, que já tinha começado em 1968, com 9,8% (vai chegar a 14% em 1974, quando é abatido pela primeira crise do petróleo).
Não se pode separar as duas coisas, a ditadura e a economia, o arrocho e o crescimento.
Tudo aconteceu graças ao AI-5.
Imaginemos outro cenário, como o de hoje por exemplo; imaginemos o crescimento econômico, muito maior, mais "acelerado", do que o de hoje, como de fato houve, e junto com ele o arrocho salarial, a concentração de renda, e não a distribuição, como acontece nos governos do PT.
As manifestações de massa classe média continuariam aumentando e logo apareceria em cena a a classe operária.
Como de fato aconteceu mais tarde, em 1977 e 1978.
Foi o AI-5 que possibilitou o sucesso da política econômica do Delfim Netto. É óbvio.
Mas ele diz que ditadura e economia eram departamentos distintos e que não sabia de nada.
Conta outra.
Delfim, o arauto do crescimento com concentração da renda, tornou-se, hoje, um apoiador do crescimento com distribuição de renda, que os governos do PT implantaram.
A única coisa certa a se dizer sobre ele é sua impressionante capacidade de adaptação e sobrevivência, da ditadura à esquerda, do arrocho à distribuição de renda.
Para o que sempre contou com a simpatia de jornalistas importantes.
Do Diário do Centro do Mundo.
Por que Delfim Netto mente
Paulo Nogueira
Delfim Netto é, provavelmente, um dos maiores casos de blindagem da história e um exemplo de sobrevivência política impressionante.
Levou tempo para ele aceitar depor na Comissão da Verdade. Esteve lá no ano passado. Na versão paulista da comissão, repetiu seu velho refrão quando perguntado sobre os abusos do regime: não sabia de nada.
"Havia a mais absoluta separação. No meu gabinete nunca entrou um oficial fardado", disse. "Não existia nenhum vínculo entre as administrações."
Delfim não era um contínuo. Assinou o AI-5 quando era ministro da Fazenda de Costa e Silva. "Direi mesmo que creio que não é suficiente", afirmou naqueles tempos. Ao chancelar o ato, estava ajudando a suspender o habeas corpus para crimes políticos e contra a segurança nacional, o que foi fundamental para a indústria da repressão.
Ocupou esse mesmo cargo entre 1969 e 1974, sob Médici. Depois foi ministro da Agricultura e do Planejamento com Figueiredo. Sobre seu legado na economia, declarou que “Geisel quebrou o Brasil”. Não ele.
Nos anos Figueiredo, tornou-se uma figura meio pop. Jô Soares tinha um quadro em que metia uns óculos de lentes de fundo de garrafa, um terno apertado e o imitava. Numa entrevista para o documentário “Muito Além do Cidadão Kane”, Roberto Civita, da Abril, conta que, em 1980, quando o grupo tentou uma concessão de TV, ele tinha a seu lado “Golbery e Delfim, os dois homens mais importantes do governo naquela época”.
Declara não ter conhecimento da OBAN, apesar de sua proximidade com gente como Henning Boilesen, o dinamarquês que presidiu a Ultragás e financiou a tortura.
Mesmo com a imprensa sob censura, o cidadão medianamente informado tinha noção do que acontecia. Era um segredo de polichinelo. E Delfim, repito, não era um contínuo. Depois da redemocratização, foi cinco vezes deputado federal, virou colunista de jornais e revistas, conselheiro de Lula e absolvido sem julgamento.
Delfim Netto mente. E impede que se conheça melhor um período importante da história do Brasil.
A íntegra.