sábado, 12 de maio de 2012

Saramago, o voto em branco e a eleição para prefeito de Belo Horizonte

Este artigo antigo (15/4/2004) do eminente sociólogo português Boaventura de Sousa Santos publicado pela Agência Carta Maior me faz pensar se a proposta do escritor José Saramago para seu país quase dez anos atrás não se aplica à Belo Horizonte de 2012. Nesta cidade, onde em outros tempos Saramago foi homenageado e recebido com carinho e reverência como nunca antes talvez um escritor estrangeiro, a herança das administrações progressistas de Patrus e Célio de Castro foi rapidamente destruída e apagada pelo prefeito Lacerda, com a ajuda de um PT burocratizado e esfacelado por interesses particulares, que perdeu a dignidade e agora rasteja diante de políticos neoliberais do PSDB e PSB, a ponto do senador Aécio Neves dizer dele que se trata de "um partido menor". Algum candidato digno se apresentará na eleição deste ano para merecer os votos dos pobres, dos humilhados e dos "inconformistas"? Movimentos sociais, cujo lema é "Fora Lacerda!" -- ouvido inclusive em marchinhas de carnaval, como nos melhores momentos da cultura brasileira --,  reinventam a democracia na cidade, sem força ainda para chegar ao poder. E Lacerda, o empresário milionário que não mora na cidade que administra, o ex-comunista posto no cargo por interesses políticos e empresarias do neoliberalismo, que gerencia a cidade como se fosse a sua empresa, passará para a história como aquele que governou de forma fascista uma sociedade democrática, para usar a ideia de Boaventura Santos.

Agência Carta Maior
Saramago
Boaventura de Sousa Santos
(...) O romance de Saramago é uma denúncia dos males da democracia em que vivemos: distância entre representantes e representados; incumprimento sistemático de programas eleitorais; vulnerabilidade à pressão dos interesses económicos; e, acima de tudo, deterioração dos direitos sociais à saúde, educação e segurança social, conquistados pela mesma democracia que agora os acha descartáveis. O consequente aumento das desigualdades sociais cria um padrão de relações entre cidadãos em que é patente o abismo entre a democracia política e a democracia social. Há quatro anos escrevi um livrito (Reinventar a Democracia, Gradiva, 1998) em que temia podermos estar a entrar num período em que as sociedades são politicamente democráticas mas socialmente fascistas.
A proposta do voto em branco é uma metáfora que, como tal, polariza a relação ideal-real. É uma profissão de fé na democracia porque só esta permite o voto em branco. Mas, sendo o voto em branco, é um acto de resistência contra esta democracia que, no entanto, valida, na medida em que a usa para a denunciar. O voto em branco é, assim, um apelo a que, a partir desta democracia, se construa outra. E aqui termina a sua eficácia enquanto metáfora. Compete aos cidadãos que se sentem interpelados por ela continuar a tarefa de reinventar a democracia de modo a que o real se aproxime um pouco mais do ideal. Nessa reinvenção não se pode prescindir da democracia representativa (DR) como o próprio voto em branco testemunha. Mas tem de se ir para além dela e complementá-la com a democracia participativa (DP). Na DR os cidadãos elegem os decisores políticos, isto é, renunciam a decidir para além do voto, delegando nos eleitos as decisões e esperando que eles decidam a contento. O desencanto de hoje nasce da frustração sistemática dessa esperança. Na DP os cidadãos tomam as decisões de modo organizado. Porque obriga a uma partilha do poder decisório, a complementaridade entre DR e DP é difícil, mas, como mostram as experiências a nível municipal, não é impossível. Penso aliás que nessa complementaridade está o futuro da democracia. 
Os inconformistas quase nunca têm razão nos precisos termos em que se manifestam. Mas quase sempre têm razão na identificação do problema que os inconforma e no sentido geral da solução que eventualmente lhe será dada. Aos inconformistas só a história, nunca os contemporâneos, pode dar razão.
A íntegra.