A ditadura militar foi uma forma de governo dos empresários brasileiros e mundiais, ninguém deveria ignorar isso. Empresários alemães emprestaram fábricas para incinerar judeus, comunistas e outros opositores do regime, por que deveríamos duvidar que empresários brasileiros fossem capazes disso também? O fato mais significativo da história recente é o apagamento da memória da luta de classes. É talvez o grande feito ideológico do neoliberalismo. Nos últimos séculos, desde que a burguesia chegou ao poder e começou a construir a sua sociedade, o conflito de interesses entre os trabalhadores e os capitalistas, que, juntos, derrubaram a ordem feudal e religiosa, foi constante. Nem bem nobres e igreja foram derrotados, o capital demonstrou ser incapaz de colocar em prática aquelas bandeiras de "liberdade, igualdade e fraternidade" e a luta de classes se tornou cada vez mais forte, mais aguda -- agora entre os vencedores. O projeto socialista dos trabalhadores, como a realização radical dos objetivos da Revolução Francesa, tomou forma e esteve presente ao longo dos séculos XIX e XX. Há quase cem anos, em 1917, pela primeira vez chegou ao poder, na Revolução Russa. Enquanto isso, o capital promovia guerras mundiais, se debatia em crises econômicas monumentais e, para se manter no poder, apelava para regimes políticos muito diferentes daquele seu projeto liberal no qual cabiam algumas liberdades e a democracia representativa. Foi graças a esses regimes nazifascistas, que proliferaram em todo o mundo, e às reformas na economia de mercado que o capitalismo sobreviveu. Mas o projeto socialista continuava uma bandeira forte -- afinal, foi a gigante União Soviética quem derrotou os exércitos nazistas e em seguida dividiu o mundo com os EUA. Para evitar que o mundo se tornasse socialista, depois da Segunda Guerra Mundial, os EUA prosseguiram na política reformista de reconstrução da Europa e do Japão, mas também seguiram promovendo guerras, como a do Vietnã, e apoiando golpes e ditaduras na América Latina, como a que no Brasil durou 21 anos. A ditadura foi um regime político muito bem sucedido no seu projeto: liquidou a oposição, prendeu e matou uma geração jovem de idealistas, garantiu a continuidade dos negócios do capital e o lucro fenomenal dos anos do "milagre". Ela entrou em cena quando o modelo democrático representativo pré-1964 não garantia mais seus interesses, promovia reformas e facilitava a organização dos trabalhadores, parte dos quais levantava a bandeira socialista, e preparou o terreno para a implantação do projeto neoliberal pós-1985, novamente no regime democrático representativo. O fim da URSS e o advento do neoliberalismo coincidiram com o fim da ditadura e funcionaram como uma tempestade que deixou o mundo de cabeças para o ar e com um único e poderoso dono, aquele que formulou o Consenso de Washington. O capitalismo ganhou fôlego novo, embora -- e isso é que é mais impressionante -- as desigualdades entre capitalistas e trabalhadores aumentassem como nunca antes. No século XXI as coisas têm sido diferentes, o neoliberalismo faz água, governos social-democratas (o reformismo capitalista de outros tempos) são eleitos -- inclusive no Brasil, pela primeira vez. No entanto, o projeto socialista não vibra mais. A tradição que atravessou séculos, forjou partidos, greves, insurreições e movimentos internacionais revolucionários carregando bandeiras idealistas foi quebrada, aparentemente para sempre.
Da Agência Carta Maior.
Kucinski: 'Jorrou dinheiro empresarial à repressão política'
Saul Leblon
O livro 'Memórias de uma guerra suja', depoimento do ex-delegado do Dops, Claudio Guerra, a Marcelo Netto e Rogério Medeiros, foi recebido inicialmente com certa incredulidade até por setores progressistas. Há revelações ali que causam uma rejeição visceral de auto-defesa. Repugna imaginar que em troca de créditos e facilidades junto à ditadura, uma usina de açúcar do Rio de Janeiro tenha cedido seu forno para incinerar cadáveres de presos políticos mortos nas mãos do aparato repressivo. O acordo que teria sido feito no final de 1973, se comprovado, pode se tornar o símbolo mais abjeto de uma faceta sempre omitida nas investigações sobre a ditadura: a colaboração funcional, direta, não apenas cumplicidade ideológica e política, mas operacional, entre corporações privadas, empresários e a repressão política. Um caso conhecido é o da 'Folha da Tarde', jornal da família Frias, que cedeu viaturas ao aparato repressivo para camuflar operações policiais. Todavia, o depoimento de Guerra mostra que nem o caso da usina dantesca, nem o repasse de viaturas da Folha foram exceção. Esse é o aspecto do relato que mais impressionou ao escritor e jornalista Bernardo Kucinski, que acaba de ler o livro. Sua irmã, Ana Rosa Kucinski, e o cunhado, Wilson Silva, foram sequestrados em 1974 e desde então integram a lista dos desaparecidos políticos brasileiros. Bernardo atesta: "Está tudo lá: empresas importantes como a Gasbras, a White Martins, a Itapemirim, o grupo Folha e o banco Sudameris, que era o banco da repressão; o dinheiro dos empresários jorrava para custear as operações clandestinas e premiar os bandidos com bonificações generosas". No livro, Claudio Guerra afirma que Ana Rosa e Wilson Campos -- a exemplo do que teria ocorrido com mais outros oito ou nove presos políticos -- tiveram seus corpos incinerados no imenso forno da Usina Cambahyba, localizada no município fluminense de Campos. A incredulidade inicial começa a cair por terra. Familiares de desaparecidos políticos têm feito algumas checagens de dados e descrições contidas no livro. Batem com informações e pistas anteriores. Consta ainda que o próprio governo teve acesso antecipado aos relatos e teria conferido algumas versões, confirmando-as. Tampouco o livro seria propriamente uma novidade para militantes dos direitos humanos que trabalham junto ao governo.
A íntegra.