A matéria da Carta Maior sobre o voto do ministro Ayres Brito merece ser lida na íntegra, pois tem outras partes importantes.
O voto do presidente do STF pode ser visto de duas formas. Uma é a de um emaranhado de justificativas para acompanhar o relator, fazer o que exige a imprensa protofascista e condenar os petistas.
A outra vai além: manifesta um arranjo golpista da direita contra os governos Lula e Dilma. Funciona como um aviso de que a coisa não vai parar aí, que outras coisas acontecerão caso o PT persista em querer governar.
A hipótese deve ser considerada, uma vez que os casos de golpe na América Latina se multiplicam nos últimos anos. Desde a tentativa de deposição do presidente Hugo Chávez, em 2002, liderada por uma emissora de televisão e que acabou frustrada, vários exemplos demonstram que a direita experimenta novas fórmulas de golpe sem protagonismo militar.
A forma como a imprensa de direita brasileira trata o presidente Chávez -- reeleito mais uma vez pela maioria dos venezuelanos, em eleições livres e sem fraudes, como atestam o noticiário e observadores internacionais -- demonstra ela está afinada com sua similar venezuelana.
A deposição do presidente paraguaio Lugo pelo Congresso num processo sumário e instantâneo que provocou reações democráticas mundo afora é outro exemplo. A "grande" imprensa brasileira considerou o golpe normal, trata o novo governo como legal e ainda condenou a decisão do Mercosul de excluir o Paraguai. Num caso e noutro, a mensagem foi dada: somos a favor de golpes de direita.
A fórmula do golpe brasileiro ainda está sendo testada. Poderia ser o impedimento, que foi testado com Collor, mas não vingou contra Lula em 2005, porque o governo era recente, gozava de simpatia popular, tinha por trás um partido organizado e forte (ao contrário de Collor) e o presidente avisou que resistiria, uma novidade que pegou a direita desprevenida.
Agora, a tentativa passaria pelo poder Judiciário -- e, claro, pela "grande" imprensa, o verdadeiro partido da oposição, cuja função é pautar a atuação da justiça, a começar pelo STF, mas não só ele, e formar a opinião pública. A ideia -- que o julgamento do "mensalão" materializa -- seria proporcionar julgamentos que não se baseiam no processo, mas na "vontade da opinião pública". E como a opinião pública é formada pela "grande" imprensa, que se expressa em uníssono...
O novo modelo golpista ensaiado no Brasil consistiria, assim, em transferir para o Judiciário uma fatia importante do poder político, capaz de anular o Legislativo e intimidar o Executivo. Julgando os caos mais importantes com base na "vontade popular", o STF estaria respaldado pela opinião pública manipulada pela "grande" imprensa.
Nesse modelo, o ministério público adota a tese formulada pela imprensa e o juiz julga conforme a "vontade popular" -- como se viu no caso do "mensalão". Quando seguem este roteiro, juízes e promotores são recompensados; quando não fazem, são perseguidos.
Basta ver o relator do processo do "mensalão" na capa da veja desta semana ("O menino pobre que mudou o Brasil") e sua frase ("Nunca fiz política, não seria agora que iria fazê-lo") estampada no saite da revista. A edição é a celebração do êxito da campanha sistemática pela condenação dos petistas que a própria revista liderou desde o começo.
O voto do ministro Ayres Brito acrescenta informações a esse modelo ao desqualificar o Congresso. Faz sentido: para a direita, um Legislativo dominado pela esquerda não cumpre sua finalidade. Se o STF, a instância máxima da justiça nacional, apontada como impermeável aos interesses políticos, condena o Congresso, é legítimo que este seja golpeado. Ainda mais se considerarmos a péssima imagem que os brasileiros têm dos políticos. Mais uma vez, uma ação exemplar seria feita em nome da "opinião pública".
Ayres Brito fala em defesa da "vontade popular expressa pelas urnas", mas o efeito
do que ele prega é exatamente o contrário: pôr em dúvida a legitimidade
dos governos Lula e Dilma, eleitos pela maioria dos brasileiros. Assim como os deputados e senadores, aliás. Ao contrário do próprio ministro, que não foi eleito, mas se considera com autoridade para desqualificar os "representantes do povo". De onde Ayres Brito tirou
seu poder? Será um poder de origem divina?
O presidente do STF fala ainda num "projeto de continuismo governamental" que o "mensalão" teria tentado pôr em prática, mais uma tese da "grande" imprensa que o STF adotou. Tese que, assim como a do "mensalão" (pagar parlamentares da base governista para votar a favor de projetos com os quais eles já concordavam), não faz o menor sentido: não vivemos num sistema parlamentarista, em que o governo se perpetua com base na maioria parlamentar, o presidente brasileiro é eleito de quatro em quatro anos como diz o próprio Ayres Brito. A contradição é evidente: quem "perpetua" o poder do PT é o povo, o voto da maioria.
Como é que tudo isso combina para configurar o golpe? Lula já não é presidente. No entanto, se um processo contra ele for instalado, ele não poderá voltar, e isso já será uma batalha ganha. A ideia já foi lançada. Os governos exitosos do PT podem virar uma bagunça, pois as leis aprovadas pelos "mensaleiros" podem não valer -- esta hipótese também já foi levantada.
Enfim, a direita só tem a ganhar. Na pior das hipóteses, o julgamento propiciou a intimidação do PT e a manipulação do eleitorado, além de se retirar de circulação alguns petistas importantes.
Os golpistas costumam dizer o contrário do que fazem e costumam
levantar a bandeira daquilo que querem impedir -- os exemplos são
muitos, mas basta lembrar da "revolução" de 64. Ayres Brito é insistente na defesa da "vontade das urnas". No entanto, o caminho que o julgamento do "mensalão" abriu foi justamente o contrário: anular por outras vias a expressão do desejo da maioria dos brasileiros que a partir de 2002 passou a votar no PT e deflagrou um processo que não tem fim à vista.
É claro que não tenho provas disso, são apenas "evidências". E "inferências lógicas".
Da Agência Carta Maior.
Presidente do STF condena modelo de “governo de coalizão”
Najla Passos
Brasília - O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ayres Britto, acompanhou a íntegra do voto do relator, ministro Joaquim Barbosa, e condenou oito dos réus acusados de corrupção passiva no processo do "mensalão": os petistas José Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares, além do empresário Marcos Valério, seus sócios e funcionários. Mas Britto foi além: condenou também o modelo de "governo de coalizão", adotado no país desde o final da ditadura militar.
Embora tenha iniciado seu voto explicando que o sistema de coligações não pode ser objeto de estranhamento ou de crítica, a não ser que seja formado de forma "agentária, pecuniarizada", Britto afirmou que ele só pode vigorar nos períodos pré-eleitorais e, quando já eleito um governo, de forma episódica e pontual para a provação de projetos específicos. "Basta lembrar que, mesmo nos períodos pré-eleitorais, o sentido das alianças é o da sua transitoriedade", afirmou.
Nas palavras exatas do presidente da mais alta corte do país, "cada partido político é autônomo, goza de autonomia política, administrativa e financeira em boa medida. Tem a sua identidade ideológica, ou político-filosófica, mas tudo isso é suspenso, legitimamente suspenso, para a formação de coligações durante o período eleitoral. Terminado o período eleitoral, as coligações se desfazem, de direito. E são substituídas por alianças tópicas, pontuais, episódicas, para a aprovação de projetos específicos. Não faz sentido, à luz da autonomia política de cada partido e da sua identidade inconfundível, ideológica e política, uma aliança formal ad aeternum, porque isso, mais do que a perenização no tempo dessas coalizões, implica em um condicionamento material na hora das votações".
Britto ressaltou que a hegemonia política de um partido não pode ser construída a partir de alianças perenes com os demais, principalmente se forem conquistadas à base da propina. "Um partido não tem o direito de se apropriar do outro, de açambarcar o outro partido, menos ainda à base de propina. E, estendendo sua malha hegemônica e a sua dominação, para um pool de partidos que, como mostrou o Ministério Público, aconteceu no caso concreto", avaliou.
Para o ministro, no "mensalão", as alianças partidárias foram "compradas" de forma profissionalizada pelas empresas de Marcos Valério, classificado por ele como protagonista-mor do núcleo operacional. "Um pull de empresas mediador se especializou na sua expertise. É por isso que atuou por vários anos. E mobilizou, em valores da época, incorporando os empréstimos do BGM (sic), R$ 153 milhões", acrescentou.
Voz ideológica das urnas
O presidente subiu o tom para criticar o que chamou de esse estilo de fazer política excomungado pela ordem jurídica brasileira que, como não poderia deixar de ser, adulterou, do ponto de vista ideológico, o resultado da eleição. "Nós sabemos que a urna tem voz ideológica. A cada eleição popular, em uma determinada circunscrição geográfica, um espectro ideológico se desenha. Ressai de cada urna um perfil ideológico que, em tese, deve vigorar por quatro anos, porque o voto é a expressão da soberania popular. E o que é soberano é para ser respeitado", justificou.
Para ele, quando se faz uma aliança firmada em bases financeiras de repasses entre os partidos, este perfil ideológico saído da urna, é arbitrariamente alterado pelos que fazem este tipo de acordo político. "Compra-se a consciência do parlamentar propinado, subornado, corrompido. Parlamentar que, nesta medida, trai o povo inteiro, porque trai o mandado popular. O ministro Celso de Mello tem toda razão quando fala em profanação do ideal republicano", continuou.
Teoria do domínio do fato
Britto destacou que a denúncia se fundamenta na prática de núcleos imbricados: o político (intelectual), e dois operacionais a serviço do primeiro, o financeiro e o publicitário. "Em cada núcleo, há uma hierarquia de comando, o que justifica a adoção da polêmica teoria do domínio do fato como fundamento jurídico", justificou.
No núcleo publicitário, destacou o papel de Marcos Valério que, para ele, possuía o dom da "ubiquidade", "estava em todo lugar". "Ele tinha (sic) um instinto apuradíssimo de prospecção de dinheiro. Onde houvesse a possibilidade de se reunir recursos financeiros, ali estava Marcos Valério. Por isso, que não há nenhum réu que não se relacionasse com Marcos Valério". E continuou: "era praticamente impossível não saber que lidar com ele, Marcos Valério, seria participar de um sofisticado esquema de corrupção e de lavagem de capitais para dizer o mínimo".
O presidente, entretanto, ressaltou que o objetivo, primeiro, dos demais réus não era praticar o crime de corrupção. "Claro que o objetivo não era corromper, mas acumular recursos. Me parece que os autos dão conta, que sob a velha, matreira e renitente inspiração patrimonialista, um projeto de poder foi arquitetado. Não de governo, porque projeto de governo é lícito, é quadrienal. Mas um projeto de poder que vai muito mais de um quadriênio quadruplicado. Um projeto de poder que, muito mais do que continuidade administrativa, é seca e razamente continuísmo governamental. Golpe, portanto, neste conteúdo mais eminente da democracia, que é a república", criticou.
Discurso defensivo
O presidente da corte retomou o discurso defensivo do decano Celso de Mello, ao garantir que a lisura do julgamento. "Tudo aqui foi feito atomizadamente, individualmente, passo a passo, reconstituindo a materialidade de cada fato e fazendo a composição de um panorama, o conjunto da obra. Isso se fez com pleno respeito às garantias constitucionais desse processo. Nenhum ministro se usou do raciocínio dedutivo, mas sim do indutivo, do particular para o geral. Mas inferências lógicas são aceitas. O réu não pode ser julgado pela sua história, ele é julgado pelo que fez concretamente no processo".