terça-feira, 2 de outubro de 2012

Autran Dourado, 1926-2012

Morreu domingo no Rio de Janeiro, onde morava desde a juventude, o escritor mineiro Autran Dourado, autor de obra não muito grande mas muito respeitada. Ele foi secretário de imprensa de Juscelino Kubitschek quando governador e o acompanhou, no Rio, na mesma função, quando se tornou presidente. Em 2000 publicou pela Rocco um livro de memórias desse período, Gaiola Aberta -- Tempos de JK e Schmidt, precioso não só pelas histórias que testemunhou e por revelar, já no título, a importância do poeta Augusto Frederico Schmidt no governo JK, mas também por sua qualidade literária. É dele o trecho seguinte.

Eu estava no Catete quando o presidente mandou me chamar. Ele então me disse sei da sua grande amizade pelo Schmidt e ele lhe quer muito bem. Queria lhe pedir um favor, é mais uma questão de Estado. O Schmidt está certo de que será o ministro do Exterior. Eu mesmo tive um dia a leviandade de chamá-lo de ministro. Procure o homem e lhe diga que eu, por poderosas razões políticas, não tenho outro jeito senão nomear o San Thiago Dantas, disse o presidente. Mas o senhor vai mesmo nomear o San Thiago? disse eu. Ele sorriu e disse não, é porque o Schmidt é inimigo do San Thiago, e à ideia da nomeação do San Thiago, ele abrirá mão de suas pretensões. Mas por que o Schmidt, com tantos títulos e serviços prestados, não pode ser ministro? disse eu. Me perdoe a pergunta.
JK demorou a responder, vi que ele se sentia envergonhado diante de mim. Por vários motivos, principalmente porque ele é um homem muito inteligente e brilhante, disse JK. Diga a ele que pode indicar quem quiser para ministro e que quem vai mandar na política externa do Brasil é ele. O outro será pro forma. Sugira alguém medíocre, com o Negrão de Lima, que é quem na verdade me convém. Pense um minuto, considerando a sua função e a sua amizade.
Fiquei calado, em dúvida que me parecia terrível; a fidelidade a JK, a quem eu devia, por função, lealdade, e a Schmidt, que se dizia, e disso já tinha dado provas, meu amigo. Recordo que me lembrei na hora, como uma muleta para o meu espírito manco e angustiado, de uma frase de Sófocles, que está na Antígona, escrita para outra situação e outro contexto: "Todo aquele que acima do Estado coloca o amigo, eu o considerarei por nulo".
No dia seguinte, o coração pesado, fui à casa do Schmidt. Lhe contei tudo o que o meu mestre mandara, incluindo a possível nomeação do Negrão de Lima, amigo de Schmidt de longa data, e que era ele, Schmidt, quem faria, com o pessoal da OPA, todo o seu Gabinete. Schmidt se dirigiu para os fundos do apartamento, gritando Yedda, venha cá.
Não demorou muito e ela estava diante de nós. Yedda, o Autran vai repetir para você o que acabou de me dizer. Repeti tudo que dissera. O Juscelino é um canalha! disse ela. Mais do que um canalha, disse Schmidt.
Ele ergueu os braços para o alto, o robre de chambre caiu-lhe dos ombos. Os grandes olhos negros de Schmid faiscavam, as mãos trêmulas, me pareceu que ele ia ter um acesso. Nu, grande e peludo, a situação que vivíamos era patética e ao mesmo tempo grotesca. Um longo silêncio se seguiu.
"O brilho nos olhos do poeta foi se tornando úmido e duas grossas lágrimas lhe desceram pela cara. Você, mineiro, é frio, não é meu amigo nem deixa de ser. O Juscelino, porém, é um bom canalha, como disse a Yedda.
Uns seis meses depois contei a ele como se passaram as coisas, que eu não tinha outra saída. É, Autran, a política não é feita por homens de alma delicada como a nossa. Apanhe ali na mesa o meu último livro e leia a dedicatória em que lhe prevejo um grande futuro. "A Autran, mestre venerado para as gerações futuras, por enquanto humildemente aplicado em acumular uma experiência terrível."