Continua viva e atuando como nos tempos da Guerra Fria e da ditadura militar.
Da Carta Capital.
Nós, os inimigos
Por Leandro Fortes
Em 24 de abril de 2009, sob as barbas do então presidente Lula e com o apoio do ministro da Defesa, Nelson Jobim, o Exército do Brasil produziu um documento impressionante. Classificado internamente como "reservado" e desconhecido, até agora, de Celso Amorim, que sucedeu a Jobim no ministério, o texto de 162 páginas recebeu o nome Manual de Campanha – Contra-Inteligência. Trata-se de um conjunto de normas e orientações técnicas que reúne, em um só universo, todas as paranoias de segurança herdadas da Guerra Fria e mantidas intocadas, décadas depois da queda do Muro de Berlim, do fim da ditadura e nove anos após a chegada do "temido" PT ao poder. Há de tudo e um pouco mais no documento elaborado pelo Estado Maior do Exército. A começar pelo fato de os generais ainda não terem se despido da prática de espionar a vida dos cidadãos comuns. O manual lista como potenciais inimigos (chamados no texto de "forças/elementos adversos") praticamente toda a população não fardada do País e os estrangeiros. Citados de forma genérica estão movimentos sociais, ONGs e os demais órgãos governamentais, de "cunho ideológico ou não". Só não explica como um órgão governamental pode estar incluído nesse conceito, embora seja fácil deduzir que a Secretaria de Direitos Humanos, empenhada em investigar os crimes da ditadura, seja um deles. O manual foi liberado a setores da tropa por força de uma portaria assinada pelo então chefe do Estado Maior, general Darke Nunes de Figueiredo. Ex-chefe da segurança pessoal do ex-presidente Fernando Collor de Mello, Figueiredo é hoje assessor do senador do PTB de Alagoas. O texto é dividido em sete capítulos, com centenas de itens. O documento confirma oficialmente que o Exército desrespeita frontalmente a Constituição Brasileira. Em um trecho registrado como norma de conhecimento, descreve-se a política de infiltração de agentes de inteligência militar em organizações civis, notadamente movimentos sociais e sindicatos. O expediente, usado à farta na ditadura, está vetado a arapongas militares desde a Carta de 1988, embora nunca tenha, como se vê no documento, deixado de ser usado pela caserna. Também há referências a controle de meios de comunicação social e técnicas de contrapropaganda, inclusive com orientação para a disseminação de boatos, desqualificação de acusadores e uso de documentos falsos. Em outra ponta, o manual tem servido de bússola nas ações disciplinares contra oficiais da força, muitos deles ameaçados de expulsão por assumir posições políticas consideradas de esquerda ou simplesmente por criticar as doutrinas aplicadas pelos comandantes. A recomendação explícita de infiltração de agentes de inteligência em movimentos sociais, assim como a mania de bisbilhotar a privacidade de cidadãos comuns, faz do manual uma prova de que, passados 26 anos, a ditadura ainda teima em não sair dos quartéis. Ou ao menos da cabeça do comando. É ranço direto da Doutrina de Segurança Nacional, acalentada nos bancos da Escola Superior de Guerra (ESG) e praticada, em tempos idos, pelo extinto Serviço Nacional de Informações (SNI). Na quarta-feira 12, ao ser informado por CartaCapital da existência do documento, o ministro Amorim pediu esclarecimentos sobre o texto ao comandante do Exército, general Enzo Peri, titular do cargo à época da edição do manual. Também ordenou aos demais comandantes da Aeronáutica, brigadeiro Juniti Saito, e da Marinha, almirante Júlio Soares de Moura Neto, que o informem se existem ou não manuais semelhantes em suas jurisdições. As chances de haver documentos do mesmo naipe são grandes, pois se trata de doutrina conjunta das Forças Armadas. E os comandos da Aeronáutica e da Marinha estão entre os destinatários na lista de distribuição do manual do Exército.
A íntegra.